Terra Arrasada
“Farinha pouca, meu pirão primeiro”. A frase que indica: sempre se pensará em si próprio em detrimento de outrem nos períodos de escassez. Importa avaliar que não se trata tão simplesmente da carência alimentar. Amplie-se a visão para perceber que é a carência do que quer que seja. Não excluindo, claro, o alimento, a carência a ser suprida pode ser qualquer coisa. Especialmente aquelas para as quais a demanda é maior do que a oferta.
Quando, nos Estados Unidos, os ingleses quiseram evitar a retaliação dos índios à tomada de suas terras, e ao mesmo tempo evitar o alinhamento de outras nações aos clamores indígenas, optaram por não massacrar diretamente os povos primevos. Promoveram a matança de búfalos, não apenas para se alimentar e utilizar todos os itens que aquele animal proporcionava, como pele, carne, farinha de ossos e utensílios de seus chifres. A matança descontrolada daqueles animais tirava o sustento dos nativos que, enfraquecidos, sucumbiam à fome e às doenças.
Esse expediente viria, mais tarde, a ser reutilizado pelo governo russo contra a população ucraniana, num holocausto silencioso que ficou conhecido como “Holodomor”.
Em inúmeras canções populares, criadas por compositores em diversas línguas percebe-se a referência à carência ensejada pela ausência de amor: “…mata minha sede de amor!”; “… alimenta minha alma!”; “…tenho fome do seu amor!”; entre outras tantas expressões que clamam pela saciedade de fome ou sede aparentemente só aplacáveis pela reciprocidade de determinado bem-querer.
Extrapolando ainda mais, note-se a disputa aguerrida por benesses do governo; por bons empregos; por oportunidade de se estudar em educandários conceituados; por poder conquistar o direito a lazer em suas diversas formas; entre outros. E essa luta não é igual para todos. Entre os instrumentais disponíveis a cada ator nesse espetáculo da vida, não há paridade nem justiça plena. Os filtros excluem os menos preparados e àqueles que a vida se encarregou de oferecer maior complexidade nos testes e menor capacidade em alguns sentidos, para enfrentar as próprias adversidades.
Quando ouvimos que existem programas ou projetos específicos, que visam a tentar equalizar as condições para que todos possam participar do processo evolutivo o mais próximo possível da igualdade, é frequente ouvir que se trata de “privilégios”. E tais empáfias partem, geralmente, de quem se dedica às superficialidades ao invés do esforço pelo aprendizado; a esperar de outrem o ânimo que delas se espera; do nome e dos valores construídos por terceiros e que lhes chega às mãos por herança ou meras relações.
Não raro, às PcD resta o esforço maximizado, a luta por um espaço vital, tendo que se desgastar na luta contra o preconceito e a falta de humanidade. E resta-lhes, com visível angústia, a percepção de que muitas vezes, aqueles de quem esperam parceria, colaboração, reciprocidade, são os que se locupletam com a frase inicial desse artigo. Os mesmos que, agraciados com as benesses de perfeitas condições de saúde, agem como os cossacos em suas guerrilhas rurais, oferecem, sem qualquer pudor ou resquício humanitário uma terra arrasada.

Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.
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1 Comment
Forte, pontual, nescessário!
Esse artigo consegue pontuar assertivamente os desencontros de valores. O poder é muitas vezes avassalador.
Mas há quem resista, não é fácil, nunca foi.
Seus artigos Mário Sérgio são sementes que irão fazer crescer a consciência da importância de inclusão, e irão florescer no coração de todos!