Se não existir, seja bem-vindo
Por Marianna Mafe
Existe uma categoria de cidadão que habita os condomínios com a mesma impaciência de um despertador: aquele que mede em decibéis o latido alheio. O cachorro late e ele se contorce. O cachorro respira e ele denúncia. O cachorro existe e ele deseja que não.
Essa semana, três histórias latiram ao meu redor, todas pedindo pra sair na revista da vida real. A primeira é digna de série investigativa. Um homem desceu bem cedinho com seu cachorro pelo elevador social. Isso mesmo: social. Dez minutos depois, ainda não tinha café na mesa, mas chegou uma notificação
extrajudicial. O condomínio tem regras. E também detetives ocultos, prontos pra capturar um poodle infrator.
A segunda cena se passa num condomínio de sobrados. Dois malteses,a raça que, segundo o Google, foi criada para alertar sobre o fim do silencio, vivem com uma família composta por duas crianças cheias de energia e um pai tentando vender alguma coisa importante por telefone.
Os cachorros latem. O síndico manda um áudio: Tudo bem por aí? a gentileza carregando um leve aroma de acusação. O pai respira fundo, responde educadamente, mas visivelmente sem paciência. Explica que os cães são velhinhos, as crianças são crianças, e que a combinação dos dois gera uma sinfonia diária. E que, veja bem, não há muito o que fazer: não se ensina meditação para um maltês, nem silêncio para uma criança de quatro anos.
No grupo de moradores, a história dos cachorros gritalhões acende o pavio. Um vizinho, sentindo-se tocado pelo acontecimento, diz que a mudança começa pelo dono. O pai devolve: se os filhos dos outros não brincassem na garagem em frente, os cachorros estariam dormindo. Pronto. A pipoca foi feita. A plateia se acomodou. Que comecem os juízes do silencio. De um lado, defensores do direito de existir; do outro, promotores da educação animal. Consenso nenhum, claro!
A terceira história e a cereja passivo-agressiva do bolo: uma vizinha expõe no grupo que a cachorra do apartamento 503 está latindo há mais de quatro horas.A dona da cadela, Fabiana, responde com um chá de camomila e um tapa de pelúcia:
“Bom dia, meus queridos! Minha cachorra é muito mimada e não gosta de ficar sozinha. Essa história de que ficou mais de quatro horas latindo não é verdade. Te convido pra vir à minha casa, tomar um café e me ajudar a achar uma solução, já que se sente tão incomodado(a). Estou aceitando qualquer tipo de ajuda, e não de críticas. Apesar de ser dona de casa, vez ou outra preciso deixa-la no apartamento. Eu bem que tento ensina-la a falar, mas isso não parece ser possível. Além de mimada, tem um gênio do cão. Quem sabe, quando eu sair, você possa ficar com ela? Um bom dia, um abraço de paz e um beijo cheio de
luz. Fabiana, apto. 503.”
Fabiana, se você estiver lendo isso: você é um ícone. Uma entidade. Uma guerreira zen. Um mantra com voz de dona de casa e alma de pitbull. O curioso é que ninguém se incomoda com o barulho da britadeira às sete da manhã. Ou com o vizinho do 301, arrastando móveis todo domingo como se praticasse dança contemporânea. Mas o cachorro… ah, o cachorro. Esse é insuportável.
Talvez o problema nunca tenha sido o latido. E mais fácil reclamar do barulho do cachorro do que admitir que o que incomoda é o outro ter o direito de existir de um jeito que não é o nosso.
A gente quer silencio, mas só o silêncio do outro. Quer paz, mas só se ela couber na nossa rotina. Quer convivência, desde que ela não exija nenhum esforço real.
No fim, não é o cachorro que late demais. O que mais incomoda é o barulho que vem de dentro.
Marianna Mafe é jornalista, sócia-diretora de uma agência de marketing e apaixonada pelas palavras. Entre uma campanha e outra, com humor e reflexão, se dedica a desvendar as histórias do cotidiano que estão ao nosso redor, mas nem sempre são percebidas.