Queda segura

Tarde chuvosa em BH. Início do terceiro milênio e, apesar das expectativas de grandes mudanças, incluindo o fim do mundo, baseado em pseudorreligiões e crendices, mais o contrassenso travestido de falso conhecimento científico que apregoava o Bug do Milênio, nada aconteceu.

A maioria das operações bancárias eram presenciais. Precisávamos acelerar para chegar à agência do Banco Real, na Praça Sete. Quase quatro da tarde e, depois daquele horário, só os “amigos do rei” teriam acesso às agências. Não éramos inimigos, mas nos chamar de amigos seria exagero. Carecíamos de
apressar, mesmo com as ruas molhadas e, alguns pontos, escorregadia.

Do outro lado da avenida Afonso Pena, protegidos da chuva pela marquise do Cine Brasil, e longe de possível ducha de água suja, proporcionada por algum veículo, aguardávamos a liberação pelo semáforo para pedestres. Faltavam seis minutos ainda. A preocupação aumentava, afinal, a Afonso Pena tem duas pistas largas e ainda um canteiro central a atravessar. Sem contar as longas calçadas de cada lado, pavimentadas de pedras portuguesas que, além de escorregar, permitiam a montagem de belos mosaicos.

Agora, só cinco minutos. Sinal fechado, pista alagada, com enxurradas nos cantos, mas liberada. Atravessamos às pressas a primeira pista. Do outro lado, atendendo aos veículos que vinham da avenida Amazonas e viravam à direita, em direção à prefeitura, ao Palácio das Artes e ao pronto-socorro, o verde ainda permanecia ligado por alguns instantes.

Quatro minutos. Começamos a travessia da segunda pista, um pouco menos encharcada, quanto tivemos que parar e dar passagem ao carro dos bombeiros que, aparente e provavelmente, encaminhava-se para algum atendimento de urgência. Chegamos, enfim, à porta do banco. O guarda disse que já estava fechado. “Mas ainda faltam dois minutos”, informamos irritados enquanto mostrava o relógio que, claro, marcava hora diferente do que ele usava. A contragosto ele cedeu e me apressei em direção ao caixa.

Todas as vezes, em minhas palestras, quando me perguntam como ajudar a uma PcD, respondo que, sempre que possível, perguntem à própria pessoa a forma mais conveniente. No meu caso, se começar a cair, o melhor a fazer é deixarem que a queda se conclua. A deficiência me acompanha desde bebê. Em razão desse fato, aprendi a cair sem me machucar, valendo-me de alguma habilidade dos braços. Então, como costuma ser, alguém que me segure pelos braços, vai tirar minha melhor forma de proteção e, assim, corro sérios riscos de me machucar. Minha esposa tinha plena consciência disso.

Naquele piso encerado e liso, muito molhado, escorreguei, desequilibrei e caí. Ela apenas me olhou, para minha sorte, e para estranhamento com que muitos ali a olharam. “Por que ela nem tentou ajudar? Megera!”.

Foi injustiça com ela.

Mário Sérgio

Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.

Whatsapp: (61) 99286-6236

Instagram: Mario S R Ananias (@mariosrananias) • Fotos e vídeos do Instagram

Linkedin: (34) Mário Sérgio Rodrigues Ananias | LinkedIn

Site: Mário S. R. Ananias – Sobre Viver com Pólio (mariosrananias.com.br)

Related post

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *