Prosopagnosia: ‘opa, queridão, e aí?!’
Toda hora isso acontece: alguém me sorri e me vejo diante de uma página em branco
Antonio Prata
Tenho um problema. É um tipo de burrice visual: uma dificuldade de reconhecer rostos. É como a incompetência auditiva de quem bate palma errado no parabéns, mas bater palma errado não ofende ninguém –a não ser, talvez, a Apolo, deus da música. Já não reconhecer uma pessoa numa festa, na rua, no ambiente de trabalho, faz de você um arrogante.
Toda hora isso acontece: alguém me sorri e me vejo diante de uma página em branco. Ou quase em branco. É um texto desbotado: sei que tá ali, já o li, mas não consigo me lembrar dele nem entender o que diz. É um “déjà vu” do mal. O terror toma conta de mim.
Durante um tempo, resolvi aplicar o método de intolerância zero: se eu tivesse a remota sensação de conhecer a pessoa, dava oi. Deu ruim. #meucorpominhasregras não combina com um cara que, na pista de dança, avança e dá um beijo na bochecha de uma moça —principalmente quando ele se enganou e ela é uma desconhecida. Entre arrogante e assediador, preferi ser arrogante.
Depois, tentei o método sincerão. Quando alguém me dava oi e eu não fazia ideia de quem fosse (ou seja, quase sempre), admitia: “desculpa, eu tenho um problema sério de reconhecimento facial, qual o seu nome?”. Talvez na Alemanha ou na Noruega isso funcione. No país do homem cordial, só criei desafetos.
Existe um diagnóstico para esse problema: prosopagnosia. O neurologista e escritor Oliver Sacks sofria disso. Um dia, num restaurante, uma mulher lhe deu oi. Ele perguntou de onde se conheciam. Ela disse que era sua secretária havia 25 anos e tinham se visto pela última vez fazia duas horas. Meu caso não é tão grave. Reconheceria facilmente a minha secretária. Até porque ficaria imensamente feliz por contar com uma secretária e andaria com ela pra cima e pra baixo só pra me falar quem são as pessoas.
Meu problema é só visual. Uma vez que descubro de quem se trata, lembro do nome, de onde nos conhecemos, da última vez que vi e o escambau. A treta é que nem sempre descubro. Uns anos atrás, fui encontrar um amigo no bar Empanadas. Entrei, olhei em volta. Um sujeito me acenou, animado. Fui até ele. Me abraçou: “senta aí!”. Sem graça, sentei. Achei que em dois minutos de conversa iria descobrir de quem se tratava. Dei o primeiro lance: “rapaz, quando foi a última vez que a gente se viu?”. “Lá na festa!”. Se fosse batalha naval, em 1986, Sílvio Santos diria: “água!”.
Apostei novamente. “E aí, cê tem visto o pessoal?”. (Seria ex-colega da escola? Colega de trabalho? Parceiro em algum Réveillon?) “Muito pouco! E você, tem contato com a turma?”. Peguei um guardanapo pra secar as palmas suadas. “Uns mais, outros menos.” Ele olhou nos meus olhos com uma curiosidade genuína: “Quem você tem visto?”
Eu estava encurralado. Não tinha pra onde correr. Meti uma “poker face” e mandei: “A Ju”. “Que Ju?”. Era matar ou morrer e escolhi a primeira opção. “Cara, cê não lembra da Ju?”. Ele ficou constrangido. “Putz, não tô lembrando, agora”. “Nossa, ela te adora. Sempre fala de você”. O desconforto mútuo felizmente acabou, pois meu amigo chegou, eu me despedi e mudei de mesa. Até hoje, não faço ideia de quem era.
Por favor, Meta, Alphabet, Apple, Microsoft e Amazon: antes que a inteligência artificial e a burrice natural de vocês acabem com a humanidade, façam um aplicativo, uns óculos, lentes de contato ou qualquer geringonça que identifique os outros para quem sofre de prosopagnosia. Durante o apocalipse eu gostaria de, ao menos, saber de quem estou me despedindo.