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Professor de Vinho

A pacata cidade do interior do Nordeste, nas férias de julho de 1988, foi visitada pelo Advogado Ernesto Ventura, chefe de renomada banca em São Paulo, sendo ele filho de família local, pobre e sem destaque social. Sempre muito dedicado aos estudos, fez brilhante carreira por mérito pessoal. De passagem pela “terrinha”, chamou a atenção de muitos: fez palestra na Associação Comercial, foi citado pelo Vigário da Matriz na missa de domingo como “um grande homem, merecedor de nossos aplausos, por temente a Deus”. Almoçou no Clube Social Catuense, foi recebido em audiência pelo Prefeito. Fez visitas e foi visitado. Comentava-se sua presença e capacidade de agradar a todos. Descobriram que o Dr. Ernesto gostava de beber vinho, tinto especialmente. Incontinenti, surgiram seguidores.  O pequeno estoque do lugar evaporou. Quem nunca havia experimentado o “néctar divino” improvisou saca-rolhas e deu “up grade” a canecas de alumínio para o papel de elegantes taças de cristal. Cada garrafa do vinho Chapinha presenteada ao Doutor provocava-lhe riso amarelo e calafrio na espinha dorsal, que sempre terminavam em sonoro “muito obrigado”.  Alguém mais entusiasmado lhe ofereceu um reluzente garrafão do celebérrimo Cabeça de Touro, que os “habitués” costumavam sorver em largos goles, depois de devidamente resfriado com o auxílio de pedras de gelo adicionadas aos respectivos copos. Aquelas férias ficaram no imaginário do povo, que confirmou vocação para enófilo e cunhou expressão ainda usada presentemente, em família e nos botecos da redondeza: “Vinho do Doutor… seja qual for!

Bom discípulo

O jovem Franklin Torreão foi iniciado em vinho na esteira das férias do advogado ilustre. Amigo da família, insinuou-se como acompanhante e facilitador da satisfação dos desejos do visitante. Isto incluía doces artesanais, comidas típicas, papos nostálgicos, velhas histórias, caminhadas pelas ruas, praças e vielas. Franklin se defendia com veemência ao perceber que alguém queria lhe debitar conduta alcoviteira, asseverando que “não nasci para ser arranjador de mulher para os outros. Se ele quiser, que se vire. “  E sem arrodeio, mostrava que seu interesse na amizade se resumia a “aprender a gostar de vinho”. E lá iam os dois à caça de, pelo menos, um Granja União, melhor que os de garrafão, que o tal São Braz, o Eulice e até mesmo outros do Cone Sul, também de precária qualidade. Mas não tiveram a ventura de encontrar no   mercado local o badalado vinho branco Liebfraumilch, alemão, envazado em garrafa azul, que reinava soberano em todas as regiões do pais. Certa “boca da noite” o Coronel Adonias Silva surpreendeu o Doutor ao lhe oferecer o tal “garrafa azul” como alternativa para acompanhar os petiscos que lhe servia em casa. Foi uma louvação só! Franklin, aprendiz atento, ensaiou deitar falação, se aventurando a afiançar que aquele era especialmente bem-dotado para se harmonizar com frutos do mar, “portanto, também com esta piaba frita que o Coronel nos serve gentilmente como tira-gosto”.

Pirraça paterna

O bota-fora do Dr. Ernesto Ventura foi muito concorrido. A partir das 10 horas da manhã, a casa de seus pais começou a ser visitada por amigos e admiradores de todos os quadrantes da cidade, para dar “adeus, pessoalmente, ao ilustre conterrâneo. “ Vinho era assunto recorrente, não faltando menção ao licor de jenipapo, à batida de maracujá, ao Conhaque de Alcatrão de São João da Barra. Chamava a atenção de muitos a desenvoltura com que Franklin Torreão já falava sobre vinhos, em geral. O Delegado Walter Pereira se aproximou dele, em silêncio, dando-lhe ouvido atento para finalizar:  “Você sabe que eu sou crente e crente não bebe álcool”.  Daí seu espanto diante do que chamou de conhecimento inútil e perigoso, dando início a uma pregação contra bebidas em geral. A roda foi crescendo e o entusiasmo do Delegado mais evidente. Finalizou sua intervenção sob palmas, reforçadas quando argumentou: “Vejam este rapaz, que até outro dia ainda chupava mamadeira e hoje fica orgulhoso só por que bebe vinho. Quem diria que este Franklin, menino bom, iria se tornar agente do Satanás! Isto só pode ser obra do

Demônio. “ A varanda da casa, ampla e repleta, explodiu em palmas e reafirmações de que “Jesus é Rei. Amém! “ O desafiado temperava a garganta para revidar a menção incriminadora feita pelo Delegado, quando foi tomado pelo braço direito e gentilmente conduzido por Jaime Torreão, seu pai, com fisionomia carregada. Longe de ouvidos curiosos, confidenciou ao filho que o Delegado estava certo; que ele próprio desaprovava a repentina conduta do filho, argumentando pragmaticamente: “E tem mais. Este Doutor está indo embora. Quem é que vai ficar sustentando o teu vício de beber vinho? Eu não sou! “


Enófilo escolado

Se foi obra do Capeta ou mero gosto pelo “néctar dos deuses”, não é sabido; certo é que o jovem Franklin desenvolveu de forma extraordinária seus conhecimentos sobre vinho. Leu muito a respeito, acompanhava matérias na mídia, fez cursos gerais e específicos. Virou um degustador atento, com linguajar apropriado e sofisticado. Aproveitava suas viagens a outras cidades e estados para fazer contatos proveitosos ao seu aperfeiçoamento e, principalmente, participar de degustações diversas. Chegou ao ponto de se julgar habilitado a ministrar Curso Introdutório ao Vinho. A notícia correu na cidade e logo foi procurado pelos mais ansiosos. Foi levado a abrir pré-inscrição para o curso, tantos eram os pretendentes. Em dois dias inscreveram-se 23 pretendentes a aluno, o que lhe deixou preocupado. Havia planejado curso para dez, apenas. Considerou, entretanto, que a maioria não tinha, efetivamente a intenção de fazer o curso. Ledo engano. Abertas as inscrições definitivas, com pagamento do valor cobrado, foram trinta os que confirmaram participação, sugerindo a abertura de duas turmas, solução adotada. Estrategicamente, o Professor de Vinho, como passaram a chamar o jovem Franklin, convidou o Vigário para participar do curso, sem nada pagar. Em sua turma estava também inscrito o Delegado, que se sentiu obrigado a justificar sua presença com argumento astuto: “Preciso conhecer as artimanhas do Satanás para combatê-lo melhor. “ Na aula inaugural, os alunos degustaram espumantes tipo sec, demi-sec e doce, finalizando com vinho tinto, malbec argentino com 14,5 graus de álcool. Não houve imprecaução na quantidade servida. Mas, alguns não tinham hábito de consumir álcool. Desta sorte, o Delegado foi o primeiro a demonstrar sinais do excesso bebido. O Vigário, vendo-o daquele jeito, deu início ao sarro que tiraram dele: “Obra demoníaca! Vamos exorcizar o capeta deste infeliz! “ O bom senso do Professor o salvou do deboche. Partiram todos felizes e sorridentes. O curso foi sucesso retumbante.

Aprendizes entusiastas

Sucesso chama sucesso. Franklin teve mais de cento e vinte alunos ao longo dos seis primeiros meses de atividade docente – grande marca para uma cidade pequena. Nas festas públicas e privadas, também nos melhores restaurantes da cidade, passou a ser comum, entre os clientes, cenas explicitas de exibição de novos enófilos. Quando formavam grupos eram mais barulhentos, ainda. Coitado do Professor de Vinho; coincidindo estar no mesmo restaurante onde se reuniam ex-alunos, mal conseguia tranquilidade para sua refeição.  Crivavam-no com perguntas diversas, davam-lhe a provar os vinhos que estavam bebendo, tiravam com ele dúvidas simples e complexas, demonstrando felicidade pela contemplação de outros convivas que os ouviam com atenção e curiosidade. À medida que o tempo transcorria novas turmas de estudos de vinho se revezavam, ampliando o número de aficionados. Ocasionalmente, debatiam acalorados seus pontos de vista, sem ultrapassarem os limites da civilidade. Franklin presenciou alguns desses entreveros, sem interferir no conteúdo dos argumentos, nem na temperatura dos debates. Sabia-se da existência de seu caderninho de anotações sobre “Meus enófilos e suas distorções comportamentais”. Aos curiosos perguntadores sobre o conteúdo dos registros, o zeloso Professor respondia laconicamente: “Um dia desses iremos conversar sobre isto. “

Pingos nos “is”

Numa reviravolta profissional, Franklin Torreão passou a morar em Brasília, no início dos anos noventa. Rapidamente se enturmou com especialistas em vinho, sommeliers e enófilos; consumidores e comerciantes e mais rápido que o imaginável, conquistou lugar de destaque, por seu saber elevado, por sua acuidade de observador e analista, por sua simplicidade; também por sua capacidade incomum de fazer amigos e cativar interlocutores. Cuidava com esmero de sua vasta coleção de pastas, repletas de notas, recortes de jornais e revistas assim como observações sobre vinhos. Deu aulas sobre o tema em instituições de prestígio. Angariou simpatizantes e admiradores; dava palestras concorridas e foi convidado a escrever uma coluna semanal no Diário da Corte, sobre vinhos, com estreia instigante. Ao publicar o Decálogo do Bom Enófilo, causou grande zum-zum entre os interessados na matéria, logo considerada histórica, mesmo entre os que costumavam depreciá-lo. Presentemente esquecido, vale a pena saber o que constava na peça:

DECÁLOGO DO BOM ENÓFILO

À Intenção das Novas Gerações

  1. Não beba vinho; deguste-o.
  2. Deguste em grupo e garanta mais prazer.
  3. Cultive sua memória olfativa e gustativa.
  4. Registre suas observações, por escrito ou mentalmente.
  5. Harmonize vinho e alimento para potencializar resultados.
  6. Qualifique o vinho pelo conteúdo; não pelo preço.
  7. Combata o excesso – ele destrói os benefícios.
  8. Estude vinho, continuamente.
  9. Respeite seus limites, com responsabilidade.
  10. Valorize o produtor, o anfitrião, o atendente e o vinho.

Quando o Decálogo chegou aos ex-alunos do Professor de Vinho, Franklin Torreão, em sua terra natal, causou o maior reboliço da paroquia; carapaças foram assumidas e impostas generalizadamente. Todos foram unânimes em exaltar a lição magistral do venerando mestre, sem dissenção. É verdade que naquela noite as homenagens prestadas ao líder ausente começaram como manda o Decálogo: “Não beba vinho; deguste-o”. Mas, como a noite é uma criança, a modesta adega do restaurante Marcelino Pão e Vinho foi esvaziada por completo. No dia seguinte ouviu-se amarga crítica ao Decálogo: “Ele não ter uma sirene para anunciar a hora de recolher! “  

*Por José Teixeira. Executivo/Consultor.

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4 Comments

  • Vc sabe a diferença fundamental entre ENÓLOGO e ENÓFILO?

    Pois bem, dizem que o ENÓLOGO diante do vinho TOMA DECISÕES enquanto o ENÓFILO toma decisões DIANTE DO VINHO….

    Vc concorda ou não?

    • O jogo de palavras apresentado pelo leitor é interessante.
      Posso afirmar que degustar vinho é uma excelente DECISÃO!

  • Artigo primoroso. Cheio de detalhes extremamente pertinentes. O autor sabe perfeitamente prender o leitor

    • Caro leitor,
      Sua bondade me enobrece.

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