Profecia
Enquanto observávamos um veículo novo que passava, nós, os quatro alunos do Colégio Estadual Anexo de Carneirinhos, falávamos sobre a possibilidade de algum dia termos condições de adquirir um daqueles. Carros eram quase inacessíveis para pessoas como nós. Então nos restava fazer algum gracejo e rir de nossa própria desgraça.
Enquanto me lembro desses episódios de mais de 50 anos, incomoda observar e ressentir da grande deterioração nas relações em todos os sentidos. As pessoas evitavam cometer crimes e pecados por temerem a “ira de Deus” e a “mão da justiça”. Hoje, delinquentes de diversos matizes se refestelam na certeza da quase plena impunidade, exceto se a vítima for “conhecida” de alguém ou, mais apropriado, da relação próxima ou familiar desse “alguém”. Um cidadão tem seu celular roubado, para que “a vítima da sociedade” possa tomar uma cervejinha e, não raro, deixa por isso mesmo, avaliando que o tempo que demandaria prestar uma queixa, mais a total incerteza de recuperar o bem que lhe foi subtraído, não valem esse esforço a mais. Sua hombridade, enquanto pagador de impostos e cumpridor de suas obrigações, já não tem valor social e o Poder Público parece não se interessar por seus problemas, mesmo que esse mesmo Poder seja bancado por seu trabalho e empenho.
No período de alistamento militar obrigatório, era cobrada uma taxa, não me lembro mais a que título, daqueles que se apresentavam. E ficaria isento quem trouxesse uma Declaração de Pobreza, emitida por outro Órgão Público, fisicamente distante do local de alistamento, fato que, por si, já seria um desestímulo. Achei engraçado quando um soldado informou dessa possibilidade e sugeriu que aqueles jovens “não pagassem” a alguém para “marcar lugar” na imensa fila à porta do tal Serviço, especialmente se o valor dispendido nessa contratação fosse maior que o valor da taxa cobrada pelo alistamento. Para nossos esclarecidos leitores pode parecer um total contrassenso, todavia, a fala do militar tinha fundamento, pois muitos “espertos” eram suficientemente ignorantes para tomar aquela atitude.
Essas lembranças vêm quando me percebo vítima reincidente da poliomielite: Assim como inúmeras pessoas que ainda vivem com as sequelas da “paralisia infantil”, estou experimentando um período de Síndrome Pós-Pólio (CID-10: B91), caracterizada pela perda da força muscular e dos reflexos, apesar de manutenção da sensibilidade, sendo uma doença do neurônio motor de caráter degenerativo e progressivo. E me ocorre a fala dirigida a nós por um farmacêutico de minha cidade, como uma profecia, enquanto observávamos o tal carro passando em frente à sua loja:
-Os aleijados são os marcados por Deus.
Como premonição de que aquela “marca” justificasse tantas injustiças, adversidades e dores, que deveria enfrentar ao longo da vida, sem direito, nem eventual, ao documento de isenção. O que não se via incluso, num primeiro olhar à profecia, era a qualidade dos amigos que teria durante o percurso, nem a alegria dos amores e, sequer, a força dos familiares. Ainda que nenhum deles restitua bens de qualquer natureza surrupiados, às vezes, pelos “anjos do mal”.

Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.
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