Por trás da porta 

Por Marianna Mafe

E se tivéssemos uma visão macro do que acontece, ao mesmo tempo, em todos os apartamentos de um prédio?

Imagine comigo. No primeiro andar, uma família tradicional, vivendo no apartamento deixado de herança. Todo dia de manhã, você sente o cheiro de café coado e vê o jornal sobre a mesa. Na geladeira, os lembretes com a data de vencimento das contas. Dois adultos e dois adolescentes dividem o mesmo ambiente e protagonizam uma vida sem grandes emoções, para quem espera boas histórias da vida alheia. 

Dividindo a parede com a família tradicional de classe média, vive uma estudante vinda do interior para a cidade grande, cheia de sonhos e de dinheiro dos pais. Ela quer vestir um jaleco branco e postar foto no Instagram com uma longa legenda que termina assim: agradeço aos meus pais, os reais responsáveis por terem me tornado a Dra. Juliana.  Durante o dia ela estuda medicina e à noite ensaia as coreografias que estão bombando no TikTok. 

É possível imaginar um panorama dos moradores, entre os 23 andares de possibilidades. Certamente, existem casais que brigam todos os dias e compartilham a vida íntima com o andar de baixo. Famílias bem vistas socialmente, referências de boa educação no elevador e bons perfumes também. Em várias sacadas, muitos cachorros olham o movimento da rua, farejando lá de cima a vida que gostariam de ter lá embaixo. 

São muitas possibilidades para se conjecturar. É até possível saber um pouco sobre os vizinhos, entre uma conversa de elevador, discussões no grupo de whatsapp do condomínio e convivência na área de lazer. Mas conhecer mesmo, eu só conheço a vizinha fofoqueira. Tal qual aquele estereótipo que vem à cabeça quando pensamos em uma. Um prato cheio para quem consegue se surpreender com a dissimulação das pessoas. Eu vou te contar mais sobre ela! 

A vizinha nunca teve rosto. Já puxei conversa com todas as senhoras simpáticas que vi pelo hall e não descobri de quem era a voz que fala bem alto e em tom estridente, ao lado da minha sacada. O fato é que, por volta das 18h a voz começa a fazer as ligações:

 – Pois é. Eu fiquei sabendo que a filha dela só tem pose. Está comendo o pão que o diabo amassou com aquele marido. Ele não está trabalhando, passa o dia em casa. Quando ela volta do trabalho, cansada, está tudo uma zona. E ai de quem falar alguma coisa, ele fica super ofendido. A Cláudia me falou que todo mundo percebe, mas ninguém comenta. Situação difícil não é? 

Silêncio. 

-Uhum. É, por esse lado pode até ser. 

Silêncio.

-Não, eu também acho. Eu concordo! Só tô comentando porque confio demais em você, sei que é muito discreta, então não comente com ninguém, finja que nem sabe disso.

Me pergunto porque a filha da Claudia continua com esse crápula? Será que ela já conversou com o folgado que passa o dia deitado no sofá? Outro dia, a vizinha trouxe uma pauta interessante: contratos entre familiares. A voz era mansa, seguida de muitas risadas, quando, quase em tom professoral, ela começou:

Foi bom você tocar nesse assunto. Eu sempre pergunto isso não sei porquê, já falei que eu não quero ficar mais sabendo, eu deixei aquele lugar um brinco. Ar condicionado funcionando direitinho, ventiladores instalados, as cortinas limpinhas, tudo muito bem conservado, você sabe como eu sou com higiene e limpeza. Além de me pagar uma mixaria, a bonita vem falar que o ar não gela? Que o ralo está entupido? Isso é falta de limpeza. Eu não sei se você sabe, mas ela não tem a coragem de passar um pano naquela casa. s louças amanhecem na pia. A criança já cresce naquele lar bagunçado, tudo muito diferente do que estou acostumada. Isso que eu estou te contando, não foi ninguém que narrou, o Guilherme viu. Mas não fala que eu te falei não.

Depois de algumas confissões sobre a mulher que passava calor na casa imunda, a vizinha concluiu:

-Mas então tá, querida, eu liguei só pra saber de você mesmo. Estava comentando com o Ricardo esses dias que eu precisava te ligar pra ter notícias de vocês. E não se apegue aos meus desabafos não! Esse é o resultado de alugar casa para os parentes na intenção de ajudar. E dê um beijo nos meninos. Fica com Deus, viu?

Percebi que não há perdão. Qualquer integrante da família da vizinha pode se tornar alvo da ligação do dia, até mesmo os filhos e as noras.

-Alô? Eu vou falar rápido porque daqui a pouco os meninos estão chegando aqui em casa e eles sobem direto, sem interfonar. O João me ligou pedindo para tirar a carne da lasanha porque a Patrícia está fazendo uma dieta vegana. É brincadeira? Eu disse que iria preparar algo específico, então traz alguma coisa aí da rua? Eu não sei mexer naquele aplicativo de delivery que você me ensinou. Mas depois conversamos mais, depois te conto o que a outra aprontou.

Silêncio.

-Pois é! Ele sempre vai defender a mãe dos filhos dele. Por isso que eu trato com o maior respeito do mundo, mas essa vai ser a última vez e agora eu estou falando sério.

A vizinha conhece Deus e o mundo, mas quantas pessoas conhecem mesmo a vizinha? E eu que não sei seu rosto, mas sei exatamente quem ela é? Logo eu, focada em compreender a essência do ser humano. Aliás, ao escrever esse texto, estarei fazendo uma fofoca disfarçada de reflexão? Bom…fofoca vai e fofoca vem, hoje a vizinha gritou com o marido:

-Eu já conversei com ele, meu bem. Eu falei que você ia dar uma resposta, só pra não ficar chato e agradeci o convite. Talvez eu mande um presente. Mas Deus me livre, eu quero distância desse povo fofoqueiro!

Marianna Mafe

Marianna Mafe é jornalista, sócia-diretora de uma agência de marketing e apaixonada pelas palavras. Entre uma campanha e outra, com humor e reflexão, se dedica a desvendar as histórias do cotidiano que estão ao nosso redor, mas nem sempre são percebidas.

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1 Comment

  • Muuuito boooom!

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