Pepperina e seus causos
O frango
Lá um dia, os três amigos decidiram que iriam entregar o apartamento onde haviam amoitado na Tijuca e tomar outro rumo na vida. O mais velho deles desistira do curso de Direito e decidira voltar para Goiás. Iria trabalhar com o pai nas plantações de cana para etanol, virar fazendeiro, entrar pro agrobusiness, qualquer merda, menos Rio de Janeiro. O outro, que fazia teatro na Candelária, se apaixonara por uma colega de elenco e alugara um sobradinho em Santa Tereza, onde pretendia ficar com ela, casar-se, ter filhos, dois meninos e uma menina. O derradeiro fora transferido para a agência do banco na Barra da Tijuca e teria de se arranjar por lá porque o apê da rua Visconde do Uruguai se tornara agora um estorvo. O que fazer com o papagaio que de sacanagem haviam comprado ainda filhotinho na Feira dos Paraíbas consumiu boas noites de acalorada discussão filosófica, pinga, maconha e filme pornô. Soltar, simplesmente, no Jardim Botânico, como inicialmente pensaram, não daria certo. O bicho nascera e crescera em cativeiro e certamente perdera o instinto mateiro. Seria presa fácil dalgum passarinheiro desocupado ou de um gavião-de-papo-amarelo que vivia nos telhados das casas enchendo o saco dos pardais, pombos e pequenos camundongos que saíam à noite para fornicar à luz da lua. Dar pra alguém também estava fora de cogitação. Quem iria querer um bicho daqueles, que varava as madrugadas cantando Lady Gaga ou, quando em dores de corno, “El día que me quieras, la rosa que engalana, se vestirá de fiesta con su mejor color, y al viento las campanas, dirán que ya eres mía, ylocas las fontanas, se contarán su amor”, num espanhol cagado e cheio de sotaque, a ponto de o pessoal fazer abaixo-assinado pedindo ao síndico pra expulsá-los do prédio caso não fizessem aquele estrupício calar a matraca?
Decidiram vendê-lo por qualquer preço, não pelo dinheiro, que renderia uma merreca, mas para a sorte do próprio penáceo. Tinham de vendê-lo a alguém que gostasse de bicho, que cuidasse, tivesse carinho. Não podia ser um desses maconheiros porras-loucas que odeiam banho, usam chinelo de dedo e piercing no nariz e certamente andariam com o coitadinho no ombro se exibindo no metrô para nojo desse povinho politicamente correto e alegria dos eleitores da Marina Silva. Não mesmo. Anunciaram no facebook, no boca-a-boca, no submarino, nessas empresas pontocom que prometem vender de tudo a cada quatro minutos.
Num sábado de manhã, tocaram a campainha e apareceu por lá um tipo esquisito, óculos grossos, cara de conteúdo, vestindo uma camisa do flamengo. Pela camisa, boa coisa não era, pensaram. Não tinha cara de quem gostava de bicho. Mas gostava. Soube-se com dois dedos de prosa ao pé da porta entreaberta que era juiz do trabalho. Morava no Grajaú, numa rua sem saída, toda arborizada, num apartamento grande, de quatro quartos, herdado do pai, preso na lava-jato, um dos quais transformado por ele num imenso viveiro com telas nas janelas e chão forrado de areia do Arpoador. Gostaram do sujeito e venderam-lhe o bicho. Rubro-negro…veja você… Deram de lambuja o poleiro, a cumbuquinha de alpiste, a correntinha para o pé, o bebedouro. Disseram ao novo dono do que o papagaio mais gostava, o que comia, o que bebia, as manias, os hábitos e as preferências, inclusive as sexuais. Por fim, disseram-lhe da incrível capacidade do bípede penáceo de decorar palavras e músicas.
O juiz e o penáceo se apaixonaram um pelo outro à primeira vista. O bicho saiu dali sentado nos ombros de sua excelência tagarelando aventuras e contando mentiras e nem olhou pra trás, o filho da puta. Os três amigos acharam a sua atitude extremamente egoísta, desnecessária, dividiram a grana e logo cada um voltou à arrumação das malas e ao desmonte das quinquilharias que transformavam aquele puteiro num arremedo de casa.
Assim que chegou à nova casa, no Grajaú, o papagaio foi logo ditando as regras e se fazendo dono do pedaço. Pulou dos ombros do juiz e enxotou a golpes de bico um doce pintassilgo que saboreava distraído a metade de um jiló espetada num galho seco amarrado no ventilador do teto e deu uma coça de unha num tié-sangue que se aventurara a experimentar o mamão-papaia que o louro decidira que lhe pertencia. Deixou claro ao gato angorá da casa que a partir de agora só podia entrar naquele cômodo com expressa autorização sua e foi bicar os bagos de jaca espalhados pelo chão. Quando o dono da casa o repreendeu baixinho, docemente, dizendo para não fazer aquilo com os amiguinhos, o papagaio vomitou no atrevido todo o seu vasto repertório de impropérios:
— “Amiguinhos” é o cara#!&▲¥£♂! Essa cambada de filhos da pu♂€¥# não passa de um bando de v&%dos!
— Escute, meu amigo — disse o juiz —, em tom conciliador. Data venia, você não pode sair por aí com esse palavrório. Não fica bem para um membro da ordem dos psitaciformes como você. A vizinhança repara. Olha a vizinhança! Olha a vizinhança!
— Psita o quê? Data venia é o ca*#!&▲¥£lho! E fique você sabendo, seu filho da @##$%¨ta, que não tenho amigos. Também não considero você meu amigo! Vamos deixar clara a nossa relação: você me comprou e eu agora moro aqui. Eu considero você um delinquente ambiental e o crime de tráfico de animais silvestres, você devia saber, é i-na-fian-çá-vel! Qualquer dia acordo de ovo virado e denuncio você ao IBAMA, ao Xandão, ao Barroso ou a um desses milicianos que cobram taxa de gás, água mineral e gatonet. Fico nesta bosta de apartamento por comodidade, egoísmo e instinto de sobrevivência porque, se dependesse de mim, eu ia morar no Leme ou em Copacabana e ficar no meio daquelas gostosas bebendo cerveja e cantando pagodinho. Simples assim. E tem mais: o fato de você ter me comprado não faz de você meu dono. E a sua vizinhança que vá tomar no meio do olho do *%#@! E se você não gostou, vá tomar no c#@&* você também, seu filho de uma boa *#!&▲¥£♂!
Atônito, sem saber direito o que fazer, o pobre juiz, que fez o colegial no Sacré-Couer, Direito na PUC e doutorado em Harvard, pegou o meliante pelos cornos e o trancou no congelador. Bateu a porta com força e foi refestelar-se numa poltrona macia de couro preto enquanto lia os sessenta volumes do Tratado de Direito Privado do Pontes de Miranda. Em alemão! Onde já se viu? — consolou-se —. Ou esse atrevidinho se arrependia do destempero verbal e pedia desculpas ou não sairia nunca mais dali.
Nunca mais!
Depois de alguns minutos de completo silêncio, o educado juiz ouviu uma vozinha tênue, vinda do fundo da geladeira:
— Senhor magistrado, meu amado proprietário! Excelência! Data venia! Pela ordem. Pode me conceder um aparte? Queira perdoar a minha falta de modos, o meu destempero linguajal. Estou arrependidíssimo! Prometo que não vai se repetir. Mas, por favor, me tire daqui. Estou morrendo de frio.
Com um nó na consciência, o justo e bondoso juiz foi até o congelador e tirou o penáceo de lá. Tiritando de frio e implorando por um cobertor bem quentinho, um capuccino diet e uma massagem com gelol nos pés, o coitado virou-se pro dono e disse:
— Perdoe-me a curiosidade, Excelência, mas o que que o frango fez?