Olimpíadas: protagonismo de mulheres negras pauta debate sobre saúde mental
A realização das Olimpíadas de Tóquio permaneceu em xeque até os minutos finais da prorrogação. Não é preciso dizer que a pandemia de covid-19 transformou a vida de todos (até dos negacionistas) que habitam o planeta Terra.
Não foi diferente com os Jogos Olímpicos e o Japão. Conhecido mundialmente pela organização e cuidado com sua imagem, o país asiático sofreu com um adiamento de mais de um ano até a sonhada cerimônia de abertura.
O sinal verde para o início das Olimpíadas, porém, não significou paz para os organizadores. Sobretudo para o Japão, que teve sua imagem arranhada internamente por causa da repercussão negativa provocada pela realização da maior celebração do esporte.
O medo de um desastre completo ligado à covid-19 fez com que patrocinadores como a Toyota, principal anunciante do evento, desistisse de promover os jogos. Isso deve gerar, segundo analistas, prejuízo de até 78 bilhões de reais na economia do Japão.
É bem verdade que a apreensão arrefeceu com o início das competições, mas a covid seguiu ativa, mesmo com a ausência de público e delegações reduzidas – o que provocou frustração em muita gente, como Yasmin Brunet, que não pode acompanhar o marido, Gabriel Medina, na estreia do surfe em Olimpíadas.
Tóquio registrou recordes diários de infecções, embora o Comitê Olímpico Internacional (COI) tente tapar o sol com a peneira dizendo que mais de 4 mil casos em um único dia não estão associados com os Jogos Olímpicos. Então tá.
Protagonismo de mulheres negras
A covid-19 deixou o mundo diferente. Não que a sociedade tenha embarcado na tese de que o tal “novo normal”, supostamente, transformaria a humanidade em um reduto de pessoas boas, mas as Olimpíadas refletiram debates importantes realizados por determinados setores sociais.
Foi, talvez, a primeira vez em que a competitividade do esporte ficou em segundo plano. A coragem de mulheres negras atletas foi fundamental para que isso acontecesse. A ginasta Simone Biles, considerada por muitos o maior nome da história da ginástica olímpica, resolveu priorizar sua saúde mental e mudou para sempre os rumos das Olimpíadas.
Simone Biles chegou ao Japão como a grande estrela das Olimpíadas. A norte-americana de 24 anos conquistou cinco medalhas em edições anteriores dos Jogos Olímpicos, mas nada disso importou. Biles abdicou de competições importantes em nome da sanidade mental.
“Nós precisamos nos concentrar em nós mesmas porque, no final do dia, somos humanas também. Precisamos proteger nossa cabeça e nosso corpo, ao invés de ir lá e fazer o que o mundo espera de nós”, disse ela, que voltou para os Estados Unidos com uma medalha de bronze e outra de prata.
Simone Biles não estava sozinha. Naomi Osaka, hoje a melhor tenista do mundo, falou sobre saúde mental dias antes do início das Olimpíadas. A jovem, filha de pai haitiano e mãe japonesa, decidiu não participar do torneio de Wimbledon, um dos mais tradicionais do mundo, por causa da saúde mental.
“Espero que as pessoas entendam que está tudo bem e não estar tudo bem. E que não existe problema algum em falar sobre isso. Algumas pessoas podem te ajudar e, geralmente, existe luz no final do túnel”, escreveu ela, que acendeu a pira olímpica em Tóquio, em longo texto publicado na revista Time.
O debate sobre saúde mental nas Olimpíadas foi puxado pelas mulheres negras. Elas estiveram no centro do protagonismo desta edição dos jogos. Além das já citadas Simone Biles e Naomi Osaka, uma outra atleta emocionou e inspirou.
Rebeca Andrade, paulista de Guarulhos, chegou desconhecida entre a maioria dos brasileiros. Falha de um país que ainda dá de ombros para outras modalidades que não sejam o futebol masculino. A jovem de apenas 22 anos encantou o mundo com seu talento e fez história na ginástica olímpica do Brasil.
Rebeca Andrade foi a primeira atleta da ginástica brasileira a conquistar uma medalha de ouro. Ela também levou para casa uma prata, primeira no feminino olímpico brasileiro. Rebeca elogiou a postura da colega Simone Biles, que, inclusive, vibrou com a apresentação da brasileira no solo. Outro de exemplo de que a competitividade tem limites.
“A gente sabe que o psicológico é importante. Sempre admirei muito o psicológico dela. A pressão em cima dela é muito grande. Temos que entrar na competição para nos divertir. Todo mundo sabe como ela é incrível. O fato dela ter saído não vai mudar em nada na vida. A saúde é o mais importante”, declarou Rebeca ao Sportv.
O protagonismo de mulheres negras se manifestou também em forma de protesto. O Comitê Olímpico Internacional (COI) não é muito fã de atletas com opinião própria a respeito do que acontece no mundo. A desculpa do COI é que a maioria dos competidores é contra manifestações políticas.
Pouco importou para Raven Saunders. A norte-americana, prata no arremesso de peso feminino, fez o primeiro protesto no pódio olímpico de Tóquio. Saunders cruzou os braços em formato de X, segundo ela a representação do “cruzamento em que todas as pessoas oprimidas se encontram”.
Raven Saunders, mulher negra e lésbica de 25 anos e que perdeu a tia durante os Jogos Olímpicos, também sublinhou a necessidade de manter a saúde mental em dia.
“Grito para todos os meus negros. Grito para toda a minha comunidade LGBTQ. Grito para todo o meu povo que lida com saúde mental. No fim das contas, entendemos que isso é maior do que nós e maior do que os poderes constituídos. Entendemos que há tantas pessoas que estão olhando para nós, que estão procurando para ver se dizemos algo ou se falamos por eles”, ressaltou ela à BBC.
A atleta se mostrou humana e disse que “é normal ser forte”. Mas que “não há problema em não ser forte 100% do tempo. Não há problema em precisar das pessoas”, deu o tom à BBC.
‘Fadas também estudam’
A mensagem mais bonita, talvez, foi dada por Rayssa Leal. A jovem maranhense de Imperatriz tem apenas 13 anos, mas aparenta ser mais consciente do que muita gente grande por aí. A Fadinha, prata na estreia do skate em Olimpíadas, deu show.
Rayssa estava entre as favoritas pelo talento de uma das melhores skatistas do mundo. A Fadinha, porém, encantou pela noção da realidade. Enquanto muita gente prefere fingir que está tudo dentro da normalidade, Rayssa recusou transformar sua chegada ao Brasil em festa.
Estamos em pandemia, Brasil. Rayssa Leal pediu para que as pessoas ficassem em casa ou se dirigissem até o aeroporto de máscara. Ela cancelou uma série de eventos programados para evitar aglomerações e fez questão de gravar um vídeo sobre o assunto.
“Galera, por estarmos em um momento ainda delicado quanto à Covid, eu decidi cancelar a minha recepção de chegada em Imperatriz para evitar aglomerações. Então, evitem ir até o aeroporto. Eu queria muito receber o carinho de vocês, mas esse não é o momento. Agradeço demais todo o carinho, mas se cuidem, usem máscaras, álcool e tomem a vacina, tenho certeza que em breve vamos vencer esse vírus”.
As Olimpíadas de Tóquio vão ficar na história por uma série de motivos. O principal deles é a manifestação do tão falado espírito olímpico, presente desta vez não só no gesto fraternal entre atletas ao final das competições, mas na humanidade de estrelas que sentiram alívio em mostrar ao mundo que são tão vulneráveis quanto nós.
O fato do debate sobre saúde mental ser liderado por mulheres negras dá pistas e mais pistas sobre como o peso do racismo ainda sufoca. A boa notícia é que, como diz Gilberto Gil, a seta do tempo aponta para frente e Paris é logo ali.
*Com informações do Hypeness.