Oi querida!

Já observou como cada lugar emana uma energia capaz de alterar o estado de espírito de quem frequenta? Experimente ir a um bar sem ativar seu modo extrovertido de ser: fale baixo, não comente sobre o trabalho, ou sobre seus fracassos nos relacionamentos e, claro, evite comprar um posicionamento sobre o desempenho do Neymar no Santos. Difícil, não?

Vestida da certeza de estar no lugar ideal para o dia, dona Carmem chega ao salão de beleza da zona sul, como quem pisa em um tapete vermelho invisível. Seus óculos escuros ocupam metade do rosto, e a outra metade está franzida de desgosto e amargura. Para melhorar o humor, só mesmo gastando quatro dígitos no cartão de crédito, sentindo o cheiro daquele bland de shampoo, esmalte e cabelo queimado.

Dona Carmem, falamos da senhora outro dia. Sentimos sua falta!

Mentira, Márcio, fiquei um mês sem aparecer e ninguém me ligou perguntando se eu tinha morrido!

A risada alta do cabeleireiro soa como um pedido de socorro. Ele entende que começou o ritual do dia.

A senhora me mata de rir!

A senhora está no céu.

Dona Carmem sente que a cidade inteira resolveu envelhecer ao mesmo tempo que ela. Uma tragédia! Mas no salão, a realidade é inventada e ela acredita. Ou finge e não liga.

– É verdade! E parece que você parou no tempo! – com ênfase na palavra você. Vou te deixar no lavatório e vamos começar.

O assistente do salão, um rapaz de vinte anos e paciência infinita, lava seus cabelos como quem manipula uma relíquia sagrada.

— Ai, que água fria!
-Desculpa, amor! Vou esquentar!
-Ai, que água quente!
-Esquentei demais, perdão! Melhor assim?
-A temperatura sim. A minha nuca não.
-Vou colocar uma toalhinha morna, vai te ajudar a relaxar!

Desculpa vai e desculpa vem, os cabelos de Dona Carmen são cuidadosamente envolvidos em uma toalha e ela é levada à cadeira do Márcio. Joga a bolsa sobre a poltrona à esquerda e tosse tapando a boca, com a língua para fora. Um show de deselegância! Mas cada gesto é visto com naturalidade e acompanhado de um sorriso cordial pelos assistentes de Márcio.

-Vou dar só uma leve repaginada, algo moderno, elegante e que combine com você.

A aparência mudou de “água” para “water”. Mas Dona Carmen se sente uma nova mulher, sorri de lado, satisfeita, com autoestima de um faraó.

-Ficou bom! Pode escovar.

-Que bom que gostou! E seu cabelo é muito forte. Sustenta bem o estilo que escolheu.

-Uhum!

A tarde da realeza é cercada de elogios desonestos, café com açúcar, e muito empenho da equipe do salão. Depois de produzida, dos pés ao último fio de cabelo, os óculos escuros voltam ao rosto. Ela abraça o cabeleireiro, diz que volta na semana que vem, ignora a moça que escovou; a manicure que recolhe os esmaltes sentada em um banco baixinho, vai ao caixa e passa no débito.

Márcio guarda a tesoura e massageia as têmporas. Ele também tem contas a pagar, a parcela do financiamento do apartamento venceu ontem. E ainda precisa sorrir. Sorrir quando não quer. Sorrir quando dói.

Volta para casa dirigindo o primeiro carro automático que comprou em 60 vezes, com uma prestação que aperta o orçamento do mês. Esquenta a marmita fitness congelada e não consegue checar as mensagens no celular, tamanha exaustão. No dia seguinte, às 8h, precisa estar de volta ao salão. E a roda gira, principalmente naquele lugar.

Márcio trabalha muito para mudar de posição nessa dinâmica. Não suporta a Dona Carmen, mas faz de tudo para chegar onde ela está. Além do compromisso com o salão, começou a ministrar cursos para novos cabeleireiros. Os encontros mensais são longos, cansativos e ocupam o único fim de semana que estaria de folga. Mas o movimento é necessário. Afinal de contas, alguém tem que bajular o bajulador.

Marianna Mafe Marianna Mafe é jornalista, sócia-diretora de uma agência de marketing e apaixonada pelas palavras. Entre uma campanha e outra, com humor e reflexão, se dedica a desvendar as histórias do cotidiano que estão ao nosso redor, mas nem sempre são percebidas.

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