O Tempo de Deus

Já me flagrei algumas vezes questionando ao universo, a mim mesmo e até aos muitos livros a que tive acesso, a razão por tantas provações enfrentadas ao longo da vida. Já aos seis meses, a poliomielite que produziu duas cirurgias experimentais com resultados rasos. Reumatismo antes dos dez anos; úlcera duodenal hemorrágica antes dos vinte; amputação traumática da mão esquerda, antes dos trinta; hepatite C, logo a seguir; apendicite antes dos quarenta; varizes hemorrágicas; ruptura dos tendões de ambos os ombros; e por aí vai.

Ainda assim, me considero uma pessoa razoavelmente feliz. A razão? Não sei. Mas me valho da fé mostrada pelo bom Zeca Pagodinho, em “Patota de Cosme” (1987), de Monarco, Arlindo Cruz e Nei Lopes, quando diz : … Passou me caluniar, mas a Patota de Cosme não deixou me derrubar…”

Acho que muitas pessoas, especialmente aquelas mais próximas, como familiares e amigos, sempre demonstraram ter confiança em que minha vida seria menos dura após cada uma das dolorosas adversidades que enfrentei. E foram muitas. Algumas vezes tive a sensação de que minha estrada se assemelhava ao famoso “corredor polonês” em que se pode desviar de algum ataque raivoso por um lado e, a seguir, esbarrar num golpe, um solavanco do outro. Por que então insistir em continuar? Afinal, na outra ponta, como já é de conhecimento público, não há “fim do arco-íris” e, em raríssimas oportunidades encontraremos o tal pote mágico de ouro. No entanto, eu descobri enquanto mantive o foco no objetivo de ajudar a quem pudesse durante a jornada, que há pérolas em cada sorriso de gratidão, há força em cada ombro amigo ou carente que me permitem sustentar a alegria e uma palavra de conforto, de carinho. E ganhos dessa ordem também são razões para orgulho pelos amigos a quem posso abraçar e agradecer.

Com muita saudade dos inúmeros momentos de felicidade, que reconheço serem muito mais do que os de angústia, apesar da lista acima, que valeu a pena ter confiado e valeu sorrir, sempre.

O pouco conhecido autor José Gonçalves produziu, em 1943, uma pérola, interpretada pela também já esquecida cantora Marilu, “Júlia Sapeca”. Com uma poesia que informa a importância de uma grande amiga que, apesar de não ser entendida, foi de inestimável valor por sua independência, irreverência e determinação. O autor, à época, era conhecido também pelos apelidos de “Zé da Zilda” e “Zé com Fome”, sendo esse último codinome lembrado na música “Quadrilha” (1977) de Chico Buarque e Francis Hime: “… Zé com fome deitou olho na patroa do seu Lima”.

Essas referências são evocadas quando me lembro que a minha saudosa mãe cantava, para nosso infantil encanto, “Júlia Sapeca”, enquanto enrolava minhas frágeis pernas num emplastro caseiro, na esperança e fervorosa fé, de reverter o mal que me acompanharia por toda a vida. Se ela, ali com seu pequeno filho, tinha forças para cantar enquanto cuidava com carinho e derramava uma ou outra lágrima sofrida, quem sou eu para me deixar abater?

Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.

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Site: Mário S. R. Ananias – Sobre Viver com Pólio (mariosrananias.com.br)

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2 Comments

  • excelente texto, muito explicativo no início e cheio de determinação força e coragem durante todo o escopo. te amo pai, meu herói

  • Meu querido Amigo você além do dom de escrever tem uma forma especial que traz a nós a esperança e a força para confiar que pode dar tudo certo, ou melhor, é certo que dará certo quando Deus cuida

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