Escutamos histórias de atletas transgêneros que buscam competir em times e modalidades correspondentes aos seus gêneros. As barreiras, no entanto, não são fisiológicas, mas construídas em cima do preconceito e da exclusão (Foto: Pamela Moreno)

“O que falta para eu poder jogar?” Atletas trans narram batalhas por inclusão

Escutamos histórias de atletas trans que buscam competir em times e modalidades correspondentes aos seus gêneros. As regras de participação foram estabelecidas pelo Comitê Olímpico Internacional e envolvem um rígido controle do nível hormonal. As barreiras, no entanto, não são fisiológicas, mas construídas em cima do preconceito e da exclusão

“A gente precisa lidar bem com o nosso passado para poder saber que tipo de futuro quer. E com isso, me sinto em paz.” Marcelo Nascimento, 32 anos, conseguiu o que muitos brasileiros sonham durante a infância. Aos 10 anos, ele começou a treinar no futebol amador, aos 14 saiu da casa dos pais, em Sete Lagoas (MG), para jogar profissionalmente. Sua vida sempre foi de muita autonomia. Nos 16 anos de carreira no futebol, participou de campeonatos brasileiros, venceu uma Copa Libertadores, disputou a UEFA Women’s Champions League e conquistou outros títulos. 

No entanto, em 2019, viveu um perigoso quadro de depressão. Seu rendimento não era o mesmo, pensava em suicídio e precisou ser internado. E ali ele fez uma importante escolha que enterraria toda sua carreira no futebol.

O detalhe mora no fato de que, até aquele momento, o jogador era conhecido como Marcela, e jogava em times femininos. Parte de seu sofrimento se dava pelo desejo de dar início à terapia de hormonização [tratamento que envolve uso de hormônios para que a pessoa possa aproximar os fenótipos do gênero com o qual se identifica]. Isso lhe custaria a sua posição. “Melhor parar e seguir outro caminho”, decidiu. Ele queria ficar bem para depois escolher o que fazer. 

Em dezembro de 2019, rescindiu o contrato com o Corinthians. Foi a última vez que recebeu um salário como atleta. Voltou para a cidade natal, onde vive com o pai e o irmão, e ali deu início ao tratamento hormonal. “O mental foi se aproximando do físico”, ele conta.

Hoje, após um ano e meio de transição, joga como amador em amistosos e continua seu treinamento diário com personal. Mas não recebe por isso, e joga com homens que, em sua maioria, fazem por diversão aquilo que Marcelo dedicou mais da metade de sua vida fazendo como profissão e ganha pão. Ele sobrevive da economia que fez durante a carreira, do trabalho como terapeuta holístico e em alguns momentos como motorista de aplicativo. Agora, se sente bem e diz que está preparado para voltar ao profissional.https://2404751e7423c87b9f38e2e71ab16d5a.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

Apesar de complexa, a situação do atleta é menos espinhosa do que aquela enfrentada por mulheres trans, isso porque para homens trans não existem regras estabelecidas que proíbam a participação em modalidades masculinas pelas federações e comitês esportivos. Faltam, sim, oportunidades. “É como se a minha carreira no feminino não tivesse existido. Porque não posso me apoiar nela. É como se eu tivesse começando do zero”, conta Marcelo.

Já para as atletas, há um rígido controle, que estabelece a quantidade de hormônios que podem ter no corpo. Há alguns anos, até 2015, mais precisamente, era exigida a redesignação sexual [operação que visa alterar as características dos órgãos genitais buscando extinguir a percepção de disforia corporal que o indivíduo possa sentir]. Um conjunto de diretrizes foram estabelecidas pelo COI (Comitê Olímpico Internacional), o mesmo que é responsável pela organização dos jogos olímpicos. Existem, ainda assim, outras normas de órgãos internacionais, como o World Athletics (WA).

A regra vale até hoje em competições esportivas em todo o mundo: mulheres trans podem competir em modalidades femininas contanto que tenham o nível de testosterona abaixo de 10 nmol/L (nanomol por decilitro de sangue) por pelo menos 1 ano. Isso significa que a atleta deve ter passado por um tratamento de hormonização algum tempo antes das disputas. A avaliação é feita a cada 12 meses caso ela permaneça nos campeonatos. Além disso, em sua identidade deve constar o gênero com o qual se identifica pelo período mínimo de 4 anos. Não são exigências simples.

O assunto atravessa diversas áreas do conhecimento, do direito à medicina. E dos especialistas ouvidos por Marie Claire, há um consenso: o esporte deve ser um espaço de inclusão e mulheres trans devem ter suas identidades respeitadas. Entretanto, as explicações são cheias de ressalvas.

O assunto recentemente foi ponto de debate no mundo inteiro quando pela primeira vez na história dos Jogos Olímpicos 2020, uma halterofilista trans, Laurel Hubbard, de 43 anos, foi admitida pela delegação da Nova Zelândia. Sua transição ocorreu quando ela tinha 34 anos, quase 10 antes das Olimpíadas de Tóquio. Ela estava de acordo com as regras, ainda assim, sofreu uma enxurrada de críticas.

“Uma piada de mau gosto”, respondeu a levantadora de peso belga Anna Van Bellinghen, 27, ao tomar conhecimento sobre a participação de Laurel. Anna irá competir na mesma categoria que Laurel nas Olimpíadas, a de super pesos (acima de 87 kg).

Uma aliança de mulheres atletas cis, o Save Women’s Sport, busca pressionar o COI pela revisão das regras e disseminar a ideia, carregada de transfobia, de que o sexo biológico deve ser um fator de exclusão. “Se permitirmos que os homens [sic] disputem esportes femininos, haverá esportes masculinos, haverá esportes mistos, mas não haverá mais esportes femininos”, dizem em suas redes sociais.

Laurel será a primeira a competir em categoria individual. Já no futebol, Quinn, que joga pelo time canadense, é a primeira pessoa não-binária a participar das Olimpíadas. A ciclista Chelsea Wolfe está na reserva do time feminino dos EUA. Segundo o jornal Daily Mail, há outros atletas trans, mas que escolheram não falar sobre a transição para evitar possíveis assédios.

Para Thomaz Paiva, advogado especialista em Direito Desportivo, a discussão precisa ser aprimorada em muitos sentidos, inclusive nas regras. “Existe um regramento do COI, e existe a preocupação de ambos os lados, uma da proteção do esporte feminino e outra da inclusão de todos que queiram participar. É uma linha muito tênue”. Thomaz cita o caso de alguns estados nos EUA, que pela ausência de critérios bem definidos dão margem para desequilíbrio nas competições. “Nos EUA existe uma discussão muito forte nesse sentido de atletas femininas que se sentem prejudicadas, porque muitas vezes atletas que se declaram transgêneras, mas não fazem terapia hormonal, disputam, em alguns estados, em competições femininas, gerando uma discussão relacionada principalmente ao ganho de bolsa nas universidades”.

A fala do advogado encontra amparo na visão de especialistas da saúde. Isso porque o tratamento de hormonização quando feito após a puberdade não modifica a estrutura óssea e muscular já desenvolvidas, ou seja, os caracteres sexuais secundários [presença de massa muscular, largura do tórax, pêlos etc] estarão formados. Após a puberdade, a mulher trans que não tenha passado pela terapia hormonal poderá ter vantagem nas estrutura corpórea para os esportes. “Por mais que a hormonização seja adequada a massa muscular vai diminuir, mas as características da estrutura óssea não serão modificadas. Ela vai ter diminuição de massa muscular, mas ela sempre vai ser acima de uma média de uma mulher cis”, explica Karine Schlüter, ginecologista do Ambulatório de Gênero e Sexualidades (AmbGen) do Hospital de Clínicas da UNICAMP.

Caso iniciado na juventude, o hormônio masculino deixa de predominar, a médica conta, pois a produção de hormônios é bloqueada por essas medicações. “Adolescentes trans que tem sua puberdade bloqueada farmacologicamente [bloqueio puberal] e que iniciam o uso de hormônios compatíveis com o seu gênero de identidade logo após esse bloqueio, terão desenvolvimento de massa muscular e características ósseas congruentes com o ambiente hormonal proporcionado pelas medicações utilizadas. O adolescente vai começar a se desenvolver com características dentro do seu gênero de identidade, então não dá tempo dessa pessoa ter características musculo-esqueléticas conforme o sexo biológico”.

Homens e mulheres produzem a testosterona, mas em quantidades muito distintas (pode atingir, a depender da idade, 35 nmol/dl em homens e 2 nmol/dl em mulheres). O nível de Testosterona é importante nos esportes pois está ligado à formação do músculo esqueletal e cardíaco, conforme explicado por Karine. Além disso, ele aumenta a quantidade de glóbulos vermelhos no sangue, que tem como função mais importante transportar oxigênio para os tecidos do corpo, ou seja, está ligado à resistência do atleta durante as provas.

No Brasil, a terapia hormonal é oferecida gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e o tratamento pode ser continuado durante a vida toda. No entanto, a estabilidade sobre a massa muscular é alcançada entre dois e três anos de uso de hormônios. No país, o tratamento é feito por via oral, e não injetável como em muitos outros. “Para mulheres trans são utilizados 2 tipos de fármacos: um antiandrogênico, que serve para diminuir a produção e os efeitos da testosterona e o estrogênio para alcançar características sexuais secundárias do gênero feminino (aumento das mamas e de gordura corporal, por exemplo)”, compartilha Karine.

Com a terapia, logo o nível de testosterona da atleta trans cai drasticamente, algumas vezes pode ser menor do que de uma mulher cis. Segundo Joanna Harper, pesquisadora da Loughborough University e autora do livro “Sporting Gender”, o nível médio de testosterona de qualquer mulher trans, seja atleta ou não, está abaixo de 2 nmol/L, muito inferior do que define o COI. Desde 2018, o órgão internacional tem anunciado que irá modificar as regras, ajustando às atuais discussões sobre os direitos humanos. A previsão é que haja uma redução nessa taxa exigida.

Qual então a saída? “Para alcançar justiça e inclusão, esses parâmetros [como os do COI] precisam ser revistos, e as pessoas precisam competir conforme as suas características físicas que sejam pertinentes àquela modalidade esportiva”, afirma Karine. A médica aposta na exclusão dos binarismos em competições coletivas, pois, na sua opinião, os moldes atuais não dão conta da diversidade que existe. “Do jeito que a humanidade é hoje, a segregação esportiva em masculino e feminino não servem mais, assim como a segregação em nível de hormônio, sexo biológico não serve mais. As pessoas responsáveis pelas normas éticas das competições esportivas deveriam se debruçar sobre o fato de que a participação das diversidades de gênero em competições esportivas é inquestionável e que novas e criativas regras devem ser criadas para contemplar os objetivos de justiça e inclusão”.

Há outra questão, as diretrizes atuais não contemplam a realidade de pessoas intersexo (que possuam características sexuais biológicas masculinas e femininas). Karine argumenta que as regras do COI nesse aspecto são reducionistas. E mesmo para quem defende o sexo biológico como ordem, pois essa concepção não é algo que pode ser determinado com total convicção. “Existem determinadas situações de diversidade sexual em que a pessoa tem [cromossomos] XY, geneticamente do sexo masculino, mas tem uma genitália feminina, e ela tem níveis de testosterona altíssimos, mas tem resistência a essa testosterona nos seus receptores periféricos. Onde que ela vai competir? Pela regra de dosagem de testosterona ela deveria ir para competições masculinas pois sua testosterona é elevada, mesmo com um fenótipo totalmente feminino”.

Esse é o caso de Dionne do Carmo, 31, que é intersexo, e que apenas descobriu sua condição na adolescência. Ela sempre se identificou como menina, mas foi criada como garoto. “Achavam que eu era um menino típico”. Durante algum tempo treinou handebol e futebol, sempre em times femininos. O preconceito sempre deu as caras, até mesmo quando precisava usar o banheiro. “Quando tinha campeonato, muitos levavam cartazes dizendo que tinha um homem no futebol. E quando não tinha cartazes, tinha pessoas comentando de forma agressiva. Eu sofri muitas agressões físicas e psicológicas na escola”.

Ela conta que teve muita dificuldade para encontrar um médico que pudesse lhe ajudar na transição, aos 14 anos. Hoje ela pratica Karatê e diz não ter sofrido dentro do esporte. Seu sensei [mestre] é uma das poucas pessoas que conhece sua história e sempre a tratou com respeito, ela conta.

“Eu nunca pensei em abandonar o Karatê, mas hoje em dia eu penso uma ou duas vezes antes de participar de algum campeonato, ainda mais agora que eu sou uma pessoa pública e faço muito ativismo. Agora em relação ao futebol e handebol, eu desisti. Era muita pressão. Eu não queria mais ser agredida”.

Mas se mulheres trans correspondem aos quesitos, por que então isso continua sendo um problema?

Para muitos críticos, não bastam regras, e a solução seria ter como critério o sexo biológico para definir em qual modalidade o atleta deve competir. O que na prática significaria excluir pessoas trans. 

Apenas no Brasil, existem 5 projetos dos quais Marie Claire tomou conhecimento que visam justamente a esse objetivo, impedir que pessoas trans escolham participar das modalidades que correspondam à sua identidade de gênero. Em São Paulo, o deputado Altair Moraes pediu que sua proposta tramitasse em regime de urgência. O seu argumento é que permitir que uma atleta trans na modalidade feminina implica uma injustiça às mulheres cis. Se for aprovado, os clubes ou entidades esportivas que ferirem a regra serão penalizados com multa de até 70 mil reais. Incluir uma atleta trans terá um preço alto. No projeto ele cita o caso de Tifanny Abreu, jogadora do vôlei profissional pelo time Osasco São Cristóvão Saúde, em São Paulo, que ficou conhecida após conseguir autorização da Federação Internacional de Vôlei (FIVB) para jogar em um time feminino. A transição de Tifanny aconteceu em 2014 e, até 2017, ela permaneceu em campeonatos masculinos. Uma das principais vozes de oposição à proposta é a vereadora de São Paulo Erika Hilton (PSOL). Para ela, trata-se de um projeto que busca perpetuar a ignorância e discriminação. “É um projeto que não leva em consideração uma série de questões fundamentais de pessoas trans e travestis no esporte, é um projeto generalista, sem embasamento científico e excludente”.

Ela reforça que o esporte tem função social e o potencial de transformar vidas. “Eu fico pensando quantas vidas poderiam ter sido mudadas, quantas histórias poderiam ter sido diferentes se essa população, as transvestigêneres, também pudessem buscar no esporte um espaço de construção e de pertencimento social”.

A advogada Adriene Hassen, coordenadora regional na Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, explica que os projetos que partem do pressuposto do sexo biológico como regra afrontam não só aos valores essenciais do Olimpismo, como a própria Consituição, uma vez que a “Constituição confere autonomia às entidades de administração de desporto”. Além do mais, fere o princípio da dignidade da pessoa humana ao reforçar a discriminação entre pessoas.

Ela lembra que campeonatos poderiam deixar de acontecer caso um projeto estadual seja aprovado. “Num campeonato de vôlei nacional, como seria uma partida entre Minas e São Paulo, sediada em São Paulo com a presença de uma atleta trans no time mineiro? Poderíamos estar diante da inviabilização da realização de campeonatos nos locais em que as leis foram aprovadas”. O mesmo poderia acontecer se um projeto desse tipo for aprovado no Congresso Nacional. “O Brasil poderia deixar de sediar uma série de eventos desportivos por impedir a participação de atletas trans nos times em que se identificam em função do gênero”.

No projeto, Altair afirma que “tal situação vem se repetindo em diversas modalidades esportivas”. A reportagem entrou em contato com o deputado para questionar quantas atletas trans atuam profissionalmente no Brasil, além de Tifanny. A pergunta foi feita também à Secretaria Especial do Esporte do Governo Federal e ao Comitê Olímpico Brasileiro. Parece não existir uma resposta para tal pergunta.

Em nível internacional, tampouco parece haver conhecimento sobre essa informação. Durante anos Joanna Harper se dedicou ao atletismo, antes de voltar a atenção para a medicina. A pergunta foi repetida a ela.

“O número de atletas trans profissionais depende de quão exigente é a definição de profissional. Ganhei dinheiro com corridas, mas não me descreveria como um atleta profissional. Poucas pessoas que ganham quase nada de dinheiro com seu esporte se descrevem como atletas profissionais. Eu imagino que o número de atletas trans que ganham a maior parte de sua renda com esportes seja menos de dez no mundo todo.”

Para Saulo Ciasca, médico psiquiatra e editor do livro “Saúde LGBTQIA+: práticas de cuidado transdisciplinar”, há um detalhe frequentemente esquecido nesse tema que pode responder essa pergunta: “Para você ser esportista e trabalhar com isso, você tem que ter acesso ao esporte desde cedo para ter memória muscular e condicionamento físico que se dá na puberdade. As pessoas trans não têm isso. Já saem em desvantagem porque durante a puberdade elas estão vivendo questões muito complexas”.

Para muitas, falar que mulheres trans estão em vantagem, isso sim, soa como piada de mau gosto. Pois precisam enfrentar uma série de violências e exclusões ao longo da vida. A expectativa de vida de mulheres trans é 35 anos. 90% depende da prostituição para sobreviver. O problema não parece ser apenas o nível de hormônios.

Há uma ribanceira entre o que dizem os estudos médicos e a realidade vivida por jovens trans. E o preconceito, a violência, além das questões de auto aceitação devem ser consideradas. Essa é a opinião do servidor público da Secretaria de Esportes, Willy Monthmann, 36, também fundador e presidente do Angels Volley, coletivo esportivo LGBTQIA+. “O esporte para comunidade LGBTQIA+ em sua maioria geralmente está ligado a traumas, até porque é um ambiente muito machista, hostil e extremamente preconceituoso. Normalmente, as pessoas LGBTQIA + fogem da aula de Educação Física”.

Um dos times do Angels Volley é composto por 21 meninas trans, que disputam campeonatos femininos. Willy diz não ver nas quadras a diferença que afirmam existir entre elas. “Nos campeonatos que jogamos, geralmente, mulheres cis jogam melhor, mas o rendimento costuma ser igual. Elas [mulheres trans] não têm condições de jogarem no masculino. Às vezes a mulher trans sai em desvantagem porque ela cansa mais rapidamente e a agilidade é um pouco menor”.

O tratamento, ele conta, acaba refletindo nas habilidades esportivas. “A partir do momento que elas fazem a hormonização, colocam a prótese de silicone, algumas infelizmente ainda colocam o industrial, o desempenho cai muito, o salto e a força diminuem drasticamente”.

Para Willy, outro ponto merece atenção, a discriminação em quadra também afeta o rendimento. “Quando você sofre perseguição e só de você estar num ambiente e as pessoas te olharem com reprovação e analisarem com maior critério, o seu psicológico vai estar abalado. Então, elas precisam ser guerreiras e muito fortes para entrarem na quadra. Essas mulheres são mulheres e precisam ser vistas pela sociedade como tal”.

Os olhares de ódio e a discriminação em campo já foram sentidas por Isabelle Neris, 29. Mulher trans, ela também atua no vôlei amador e obteve em 2017 a primeira autorização oficial para participar de um campeonato feminino. Ela começou a hormonização muito jovem, aos 14 anos. E conta que já jogaram papéis e tampas de garrafas em jogos. Em um dos campeonatos mistos, os rapazes tiveram que acompanhá-la até o seu carro pois corria o risco de apanhar no meio do caminho.

Ela compartilha que tentou durante um tempo se inserir em um time feminino, mas sem sucesso. “Eu não podia jogar no masculino porque eu já tinha a figura feminina, e no feminino eu não podia jogar porque não me reconheciam como uma mulher”. Isso até ser aceita pelo Voleiras. O técnico a ajudou nos trâmites burocráticos. Foram juntos conversar com o presidente da Federação Paranaense de Voleibol, Neuri Barbieri. Após 30 dias pôde jogar com as outras meninas. “Muitas pessoas quando souberam da notícia foram assistir de curiosas. Nós perdemos, mas o jogo em si não foi tão tenso assim, o clima exterior e os olhares que eram”.

Isabelle começou a jogar muito nova, mas precisou parar o treinos pois trabalhava após as  aulas, para ajudar a mãe com as contas do mês. A habilidade não foi desenvolvida por completo. “Eu nunca almejei jogar no profissional porque sei das minhas limitações”. Hoje ela tem um salão de beleza, mas continua treinando de 2 a três vezes na semana.

No atletismo, Daniela Lopes, 31, tem trilhado o seu próprio caminho. Hoje ela é líder do projeto Adidas Runners, que coloca pessoas com diferentes bagagens e níveis para correrem juntas. Ela se prepara para sua primeira maratona e sempre gostou de treinar, mas a hostilidade dos ambientes de academia fez com que ela se distanciasse.

“Antes da corrida eu sempre treinei em academia e esse ambiente no começo da transição foi bem difícil, sempre ouvia piadas e comentários preconceituosos como se eu não pertencesse àquele espaço e já cheguei a ficar um ano sem ir porque eu não me sentia acolhida”.

O modelo trans Sam Porto, 26, que já teve sua história contada pela Marie Claire, tinha o sonho de se tornar jogador de futebol. Ele iniciou a transição cedo, aos 13 anos já havia contado aos pais que não se identificava como menina. Ele chegou a jogar no São Paulo Futebol Clube. E antes mesmo de se assumir publicamente como homem trans, era visto com estranhamento por jogar futebol. “Lembro que na época, por muito tempo, eu era a única ‘menina’ em todos os lugares em que eu jogava e por isso, eu sempre fui motivo de discriminação, piadas ou preconceitos, pois o futebol sempre foi muito machista. A ambição, no entanto, foi deixada de lado devido ao preconceito”.

O abandono precoce do futebol ocorreu tanto pela falta de um lugar em que ele se sentisse bem visto. “Se na época, para os olhos da sociedade eu ser uma ‘mulher’ que gostava de jogar futebol era um grande absurdo, imagina eu sendo um homem trans sonhando em jogar no time masculino. Eu já vinha saturado pela falta de oportunidade relacionada ao futebol feminino. Oportunidades para pessoas trans dentro do futebol então não existem. De tanto me magoar, eu fui obrigado a desistir”.

Das histórias compartilhadas, Marcelo e Isabelle repetiram a mesma afirmação: não sabiam por onde começar porque não havia outras referências de atletas trans, então tiveram que descobrir sozinhos. A discussão parece ir além das regras do COI, afinal para poderem competir em nível de igualdade com mulheres ou homens cis, precisam ser incluídas nos esportes, destaca o médico Saulo Ciasca. “São várias questões de acesso, que o simples fato de uma pessoa trans chegar a ser esportista, ela já venceu muitas outras batalhas que pessoas cis não sofreram. E esse processo o pessoal esquece”.

Ao fim da conversa com Marcelo, ele diz que gostaria de fazer uma pergunta para as federações, como a FIFA e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF): “Eu, Marcelo, me sinto em condições para jogar profissionalmente, mas para as federações eu estou em condições de atuar? O que me falta?”.

*Com informações da Marie Claire.

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