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Se fosse possível definir o homem num único conceito, a imagem que caber-lhe-ia à perfeição é a do poder, ou para ser ainda mais exato, a da aspiração e da vontade de exercer mando sobre quem quer que seja, impondo condições, exigindo contrapartidas pouco razoáveis às iniciativas que toma apenas por obrigação, ultrapassando os limites entre a gentileza e o abuso, por não saber inspirar respeito de outro modo. Poder é uma das drogas mais potentes já criadas pelo gênero humano. Universo particular de suas próprias ideias, vontades mais e mais imperiosas, necessidades as mais íntimas, tantas loucas possibilidades acerca do existir, o homem, quando investido de poder, se transforma ou, melhor, se revela, permitindo que aflore uma natureza que ele mesmo nunca conheceu. Sem margem para contestação, todos esses sempre foram elementos da sua própria constituição mais secreta, ainda que ele próprio nunca o confesse. Virtudes e defeitos — principalmente defeitos — estabelecem o quão resoluto pode ser um indivíduo cujo maior objetivo na vida é escalar sem descanso a muralha dos sonhos mais impublicáveis, todos ligados entre si e afinados, intentando atingir uma meta bastante específica. Essa ânsia por sair de um lugar que parece menor aos olhos do mundo e alcançar o topo, custe o que custar, passa pela cabeça de todos nós; entretanto, só aqueles verdadeiramente obcecados, seduzidos de morte pela graça maldita do poder, são capazes de fazer desse projeto tão etéreo uma realidade, perigosamente confortável.
Se algum dia histórias em quadrinhos foram definidas como publicações singelas, cuja qualidade gráfica desdenhava da técnica e do apuro estético, esse momento foi superado com folga, ou pelo público expressivo que arregimenta, ou pelo arremate sofisticado que a própria tecnologia cuidou de tornar possível. Independentemente de gostos pessoais, matéria de polêmica invencível e de nulo proveito, as histórias em quadrinhos nipônicas vêm experimentando uma era de pujança há, no mínimo, sete décadas, quando o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) revelou um Japão sequioso de algum respiro depois do infortúnio de duas bombas atômicas, enquanto também precisava refazer seu caixa.
Adaptado do mangá homônimo assinado por Akio Fukamachi, “Hell Dogs: A Casa de Bambu” é um exemplo de até onde esse gênero, que mescla texto, imagem e ação, chega. Veterano do cinema e da animação japoneses, Masato Harada por seu turno é referência na direção de filmes que se furtam à obviedade há quatro décadas. Neste trabalho, lançado em setembro de 2022, Harada consegue preservar a aura de fantasia típica dos mangás ao passo que define um andamento manifestamente cinematográfico ao longa, que sobrepõe tramas e reviravoltas sem perder o compasso. O diretor-roteirista toma a narrativa original por base, mas também avança por outras frentes, evidenciando seu dinamismo. Harada aposta no gore das histórias de Fukamachi como uma cortina de fumaça em que uma cornucópia de pistas falsas obnubila o ambiente e instiga a audiência a entrar mais fundo no que é contado.
A clara menção a “A Casa de Bambu” (1955), o clássico noir sobre o amor improvável de um agente secreto americano e uma fora da lei japonesa ajuda o espectador não iniciado nos mangás a ter em perspectiva o que vai se passar. O diretor coloca na boca de Shogo Kanetaka, o policial que se infiltra numa gangue da Yakuza vivido por Junichi Okada um texto flagrantemente messianista, isto é, Kanetaka, a exemplo de Rick Deckard, o salvador do mundo pós-apocalíptico de “Blade Runner — O Caçador de Androides” (1989), de Ridley Scott, é encarregado de um liquidar uma fatura onerosa demais, mesmo para um sujeito durão como ele, amaciado pela quimera do amor sincero encarnada por Emiri Kisa, a antimocinha da talentosa Mayu Matsuoka.
Filme: Hell Dogs: A Casa de Bambu
Direção: Masato Harada
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Ação/Mistério
Nota: 8/10
*Com informações de Revista Bula