O filme mais aguardado de 2022 e o mais caro da história da Netflix acaba de estrear
Se o zênite da carreira cinematográfica de um ator é viver um super-herói, Ryan Gosling definitivamente não tem do que reclamar. Um dos mais talentosos atores de sua geração, Gosling, astro em produções tão díspares e fascinantes “La La Land — Cantando Estações” (2016), dirigido por Damien Chazelle, e “Drive” (2011), do dinamarquês Nicolas Winding Refn, dispõe de carta branca para pegar a audiência num projeto tão inovador quanto oportuno. Não se pode afirmar com razoável margem de acerto se o expediente de lançar mão de intérpretes do gabarito de Gosling, capazes de encarnar papéis os mais versáteis, será uma espécie de protocolo a fim de avalizar essas produções, mas decerto é possível se especular que o simples gesto de fazê-lo sinaliza intenções nada modestas de plataformas de streaming quanto a avançar muitas casas rumo à feitura de conteúdos verdadeiramente relevantes, quiçá até elitistas, mesmo que preservem a essência popularesca. Esse difícil equilíbrio entre o sofisticado e o banal, querendo ser o primeiro, mas gozando do alcance do segundo, parece ser a pedra filosofal da indústria cinematográfica dos nossos dias, cujo feitiço é cada vez mais bem absorvido por essas megacorporações.
Grande aposta da Netflix na abertura da alta temporada americana de arrasa-quarteirões, “Agente Oculto” (2022), dirigido pelos irmãos Anthony e Joe Russo, custou à gigante do mercado de filmes sob demanda a enormidade de 200 milhões de dólares, o orçamento mais caro para um longa feito pela empresa. Inspirado no romance homônimo de Mark Greaney, estreia do autor no mercado literário em 2009 pela editora Globo, o blockbuster de verão dos responsáveis por “Vingadores: Ultimato” (2019) e pontapé inicial da Netflix rumo a uma megafranquia própria se apoia muito mais no elenco que propriamente na história para cavar esse espaço, e nisso deu um tiro certo. Nada intimidados com o tamanho do desafio e muito à vontade para lidar com dinheiro a rodo — “Vingadores: Ultimato” custou quinze vezes mais que “Agente Oculto” —, os Russo assumem todas as frentes quanto a entregar o que sua nova empregadora lhes exige, atentos ao algoritmo e, por evidente, aos anseios da plateia.
Atendendo pela alcunha de Sierra Six, “já que 007 não estava disponível”, Gosling dá vida ao espião cuja pena é abreviada por Donald Fitzroy, o alto burocrata interpretado por Billy Bob Thornton. Metendo os pés pelas mãos em alguma medida, Six já é solicitado para outro desafio por Denny Carmichael, seu novo superior, personagem de Regé-Jean Page: dar cabo de Lloyd Hansen, o ex-mercenário da CIA, hoje no setor privado, que anda se valendo de seus conhecimentos sobre a agência para vender informações sigilosas (mesmo que apenas faça supor que as tenha). A entrada em cena de Chris Evans se dá no momento exato em que o roteiro de Christopher Markus, Joe Russo e Stephen McFeely começava a correr o risco de derivar para um dos episódios de “Missão: Impossível” sem o pathos do Ethan Hunt de Tom Cruise. O cinismo de Hansen, temperado com lances inesperados como comentários homoeróticos sobre seu novo rival — o texto da tríade de roteiristas segue nesse diapasão até o encerramento, insinuando um possível romance dos dois num passado remoto —, baliza a história com trechos levemente cômicos, até que os confrontos entre os dois escalam um nível mais elevado, e Six terá de descobrir sozinho se seu desafeto tem mesmo poder o bastante para estremecer as relações dos Estados Unidos com outros países, uma vez que Carmichael não ficou vivo tempo suficiente para auxiliá-lo na tarefa. Igualmente cinzenta é Dani Miranda, a personagem de Ana de Armas, lamentavelmente a reboque do desempenho de Gosling.
A interação de Six com Claire, a filha de Fitzroy sequestrada por Hansen, é mais um dos artifícios usados pelos diretores no intuito de catapultar “Agente Oculto” para a fruição de outra faixa de público. A personagem de Julia Butters não demora a se afeiçoar por aquela figura um tanto casmurra que, calejada, resiste muito até se derreter de vez. Se havia alguma dúvida quanto a algum traço de bom-mocismo do protagonista, a maneira como passa a conduzir a relação com a garota assevera que sua possível afinidade com o vilão de Evans ficou mesmo num tempo morto. Um super-herói de verdade, encarnado por um homem real.