Gurufim: a tradição de se despedir dos mortos com música e bebidas ganha força e adeptos
Tradição antiga, que nasceu na África e foi trazida ao Brasil pelos escravizados
Um grupo de ritmistas da Mangueira, que já estava de prontidão desde cedo, se postou ao lado do caixão levando nas mãos surdo, tamborim e pandeiro, pouco antes de o corpo do jornalista e escritor Sérgio Cabral deixar a sede náutica do Vasco, na Lagoa, na Zona Sul, e seguir para o Cemitério Memorial do Carmo, no Caju, na Zona Portuária, onde foi cremado na última segunda-feira. Ao som dos primeiros batuques, parentes e amigos começaram a entoar “Meninos da Mangueira”, que Cabral compôs com Rildo Hora nos anos 1970. Foi o que bastou para que o clima de tristeza se transformasse numa emocionante e festiva despedida. A esse tipo de ritual fúnebre, com música e, às vezes, bebidas, é dado o nome de gurufim, uma tradição antiga, que nasceu na África e foi trazida ao Brasil pelos escravizados.
Habitual nos velórios de sambistas, a prática começa a ser adotada também fora desse grupo, como mostram vídeos que têm viralizado na internet nos últimos tempos. É uma prova de que os gurufins resistiram e se transformaram ao longo do tempo, mantendo a tradição de homenagear os mortos com música e festa.
— Antigamente os corpos ficavam em casa, na mesa do jantar. Isso a noite inteira, com o pessoal se revezando. Então, se fazia uma brincadeira para não deixar as pessoas dormirem. Hoje os velórios são nas capelas dos cemitérios e lá tem várias outras famílias e não dá para fazer a mesma coisa. O gurufim era um acontecimento muito agradável. As pessoas das comunidades não perdiam um. Eu mesmo já fui a muitos — relatou o cantor e compositor Martinho da Vila, cujo último enterro festivo de que se recorda foi o do também sambista Luiz Carlos da Vila, morto em 2008 e velado na quadra da Vila Isabel. — No início estava aquele silêncio, depois começaram a cantar baixinho composições dele, daqui a pouquinho as vozes foram aumentando e lá no outro canto um grupo montou um gurufim. Virou uma festa.
Cortejo carnavalesco
Uma prova de que os gurufins resistem, embora modificados, pode ser traduzida pela imagem de um cortejo fúnebre, que mais parecia um bloco de carnaval, dada a animação ao som da batucada. O vídeo do funeral, que seguia pelas ruas de Inhaúma, na Zona Norte, em direção ao cemitério do bairro, em meados do mês passado, já tem mais de quatro milhões de visualizações numa rede social.
A homenagem era a Marcelo Resol, de 60 anos, morto durante confronto entre policiais e bandidos no Engenho da Rainha, na Zona Norte. Percussionista, Shell, como era conhecido, foi velado na capela ao lado de onde estava o corpo de Jurema Maria de Souza Lima, ex-integrante da Velha Guarda do Salgueiro, que morreu aos 66 anos, vítima de um câncer. Como ambos se conheciam em vida e tinham em comum a amizade com integrantes do grupo de pagode Barraco de Pau, o duplo velório acabou em samba.
— A ideia foi dela. Minha mãe sempre dizia que queria roda de samba no enterro — contou Paulo Roberto de Souza Lima, de 40 anos, filho de Jurema. — Enterros na família sempre foram regados a cerveja e samba — completa ele, que é primo do cantor Almir Guineto, cujo velório na quadra do Salgueiro, em 2017, também acabou numa animada roda.
O músico Keko do Banjo, do grupo Barraco de Pau, contou que o gurufim em Inhaúma aconteceu tanto em frente às duas capelas como fora do cemitério. Durante o cortejo, músicos e acompanhantes entoavam sambas que os homenageados mais gostavam, como “Saco Cheio”, do repertório de Almir Guineto e composto por sua mãe, Dona Fia, ela mesma enterrada em 2010, igualmente com gurufim. Seguindo a tradição, no enterro de Jorge Lucas, compositor do Império Serrano morto em maio do ano passado, aos 79 anos, havia não só samba, mas também muita cerveja.
— Não tem jeito. É a tradição da família. Antigamente, sempre que morria alguém meu vô Lindinho se colocava à frente do caixão e dizia: “Abram alas que o Império vai passar”, e tudo acaba em cerveja, comida e samba — lembrou Alex Ribeiro, sobrinho de Jorge Lucas.
Quando o intérprete do Salgueiro Melquisedeque Marins Marques, o Quinho, morreu, em janeiro desse ano, a despedida na quadra da vermelho e branco foi ao som de sambas da própria escola, da União da Ilha e da Grande Rio, agremiações por onde ele havia passado.
— Não teve uma partida triste. Certamente ele teria aprovado — disse Wilker de Oliveira Marques, de 38 anos, filho de Quinho.
Quando Agnaldo dos Santos, o Bino, presidente da escola de samba Flor de Magé, da Baixada Fluminense, morreu, em maio do ano passado, imagens do cortejo que mais parecia um desfile, com ritmistas e intérpretes, viralizaram. O mesmo aconteceu com o de Carlos Jorge Rodrigues, o Mestre Bala ou Balainho, de 70 anos, em Cachoeira, no recôncavo baiano. Em vida ele teria pedido aos parentes que queria um velório com bebida e música. As imagens que ganharam as redes sociais mais pareciam um carnaval fora de época.
*Com informações de Extra