Filme italiano que acaba de estrear na Netflix é dos melhores dramas de 2023, até agora
Sydney Sibilia é um verdadeiro patriota. Um dos mais inventivos cineastas italianos de sua geração, arrebatando prêmios e indicações, a exemplo do prestigiado David di Donatello, de Melhor Novo Diretor, Sibilia parece estar sempre na marca exata para lançar uma carta matadora, e é o que volta fazer com “Mixed by Erry”, uma biografia nada usual de um homem pouco óbvio. Esse seu caráter de iconoclasta arrojado, disposto a remover um pouco que seja a crosta de bolor que se vai acumulando em filmes que dizem rigorosamente a mesma coisa, um após o outro, vem se cristalizando desde “A Incrível História da Ilha das Rosas” (2020), quando perfilou uma das figuras mais delirantemente humanistas que a Itália já conheceu. Aqui, o diretor volta a argúcia de seu olhar cuidadoso para outro sonhador, igualmente dedicado a passar da vida ordinária às páginas dos livros, mas que logo frequenta também as manchetes policiais.
A história de ascensão e queda de Enrico Frattasio começa pelo final. Enrico, o Erry do título, chega a uma penitenciária de segurança máxima em 1991 com prestígio comparável a de um dos poderosos chefões da Camorra, a máfia da Campânia, no sudeste da Itália, distribuída entre Nápoles e Caserta, bem próximo a Salerno, a cidade natal de Sibilia. À primeira vista, é difícil acreditar que aquele tipo franzino, meio assustado, ainda por metabolizar o que lhe acontecera, fora responsável por uma das maiores fraudes ao erário, duplicando ilicitamente mais de 180 milhões de fitas cassete ao longo de pouco menos de quinze anos, entre o início dos anos 1980 até ser preso. No entanto, a ótima composição de Luigi D’Oriano e o roteiro do diretor, coescrito com Armando Festa, desmistifica a imagem do mafioso truculento, dado a ardis de toda sorte a fim de manter seu negócio em evidência. Na verdade, pelo texto de Sibilia e Festa, a ideia que sobressai é a que aponta para uma certa ingenuidade do caçula dos Frattasio, como se Erry fosse apenas um sonhador, pisando seus astros distraído, cegamente dedicado a tornar-se um DJ (ou disc jockey, como se dizia então), um artista, completamente alheio à montanha de liras que começou a minar por todas as paredes do laboratório modesto num beco de Forcella. Mas a história não é bem assim.
O filme vai enumerando construções dramáticas engenhosas quanto a situar a audiência na trajetória de Enrico, que, como se vai comprovar, é a alma da famiglia, para o bem e para o mal. O protagonista surge catatônico, ouvindo a música do toca-fitas prata da loja de um conhecido dos pais ainda menino. O cassete permanece como a sensação daqueles intangíveis anos 1970 até boa parte do decênio seguinte, quando Enrico também continua na loja, agora varrendo o chão. A mudança de Enrico, um garoto tão simples quanto obstinado, assistente do pai, Pasquale, de Adriano Pantaleo na “destilaria caseira” deles — e essa decerto é uma explicação convincente para boa parte do que vem depois —, em Erry, não um DJ, mas o maior distribuidor do mercado fonográfico da Europa, toma o espaço preciso, sem sobrar ou faltar nenhuma informação. Apesar do talento, não para a música, mas a gestão de negócios, Erry e os irmãos, Peppe e Angelo, acabaram descobertos e condenados a quatro anos e meio de prisão. Uma cena pós-crédito, a grande reviravolta de “Mixed by Erry” junta o Tratado de Maastricht a uma quadra de tênis, e prova que a vida no crime é mesmo inglória — apesar das Lamborghini amarelas.
*Com informações de Revista Bula