Família Mogiana, Adeus!
Sebastião era o filho mais velho da família Mogiana. Sua voz marcadamente grave lhe valeu o apelido de “Besouro”. Eles moravam em Teresina, no Piauí, de onde o jovem auxiliar de pedreiro saiu para “ganhar a vida em Brasília, onde corria muito dinheiro” durante sua construção. Com o tempo, trocou sua árdua profissão pela de auxiliar de Salão de Beleza. Saudoso, tirou férias e foi rever seus pais, irmãos e amigos. Chamou a atenção dos vizinhos pelas unhas bem polidas, roupas impecáveis, jeito diferente de falar, linguajar afetado, “cheio de mungangos” e pelo enorme rádio portátil que carregava no ombro. Em poucos dias era objeto de insinuações maliciosas. Ele deixou escapar que tinha uma namorada. No dia de seu retorno, emocionou-se ao ouvir no aeroporto o anúncio para o “embarque dos passageiros da Cruzeiro do Sul com destino a Brasília”. Os familiares presentes se acercaram dele. Houve abraços e choramingo, sob o olhar solidário e contemplativo do rábula e vizinho Dr. João Cabral, que os trouxe em seu Pontiac Preto. Quando o DC-3 fez manobra para tomar a pista à direita lançou densa nuvem de poeira contra a estação de passageiros. A viagem de quase nove horas, incluído o tempo dedicado às duas escalas intermediárias, estava começando às 08:00hs da manhã. Aeronave lotada, os passageiros mostravam-se excitados e conversavam alegremente, em voz alta. Besouro, diferentemente, tinha fisionomia tensa, gestos inquietos e um certo ar de sofrimento. A sorridente aeromoça, interessada no bem-estar geral, perguntou-lhe se tudo estava bem. Ele compreendeu que seu estado de espírito se exteriorizava, revelando a tormenta emocional que sentia.
Lembranças e angústias
Voo sereno, ele dormitava entre cenas de infância em que alegrias e tristezas se alternavam, remoendo marcas vivas que chegaram à idade adulta. Sua passagem pelo Grupo Escolar Miguel Borges foi excepcionalmente traumática e sua memória guardada com diversas outras no “maldito baú do suplício”. Vieram-lhe à mente as incontáveis vezes em que foi objeto de “bulling”. Não se sentindo à vontade para tratar do problema com os próprios pais, resolveu falar com a Professora Das Dores. Relatou com detalhes a maneira como os colegas o atingiam. Contou-lhe que não raro mal compreendia o que diziam; apenas, captava que era censurado por ser diferente dos outros. Acusavam-no de ser organizado demais, de manter os deveres escolares em dia, em cadernos bem cuidados, em ter a pasta escolar em ordem. Nunca fora visto com a farda manchada e muito menos suja. Unhas sempre limpas, cabelo bem aparado e penteado eram marcas suas. Na hora do lanche escolar tinha gestos suaves, mastigar tranquilo de porções civilizadas. Contava amigas que amigos. Essas observações lhe eram feitas com deboche, risos sarcásticos, insinuações preconceituosas. Para evitar constrangimentos maiores, sentava-se na primeira fileira de carteiras, frente à professora. Esta a tudo ouviu sem esboçar acolhimento nem apoio emocional ao menino tímido e acuado. Foi uma conversa inútil da qual Besouro guarda profunda mágoa. Naquele instante, em sua poltrona à janela e plenamente desperto, sentiu calafrios. Encerrou o “sonho acordado” e procurou se distrair, olhando as nuvens lá fora.
Entre dúvidas
Besouro, de “cara amassada”, se reorganizou no assento, preocupado com a aparência. Apalpou a cabeça para repor a boa ordem do cabelo; acariciou o próprio rosto para lhe tirar o semblante sonolento. Desabotoou parcialmente a camisa, cheio de pudor, para conferir o cordão de ouro (tipo garimpeiro) e o crucifixo que pendia sobre o peito. Ele estava apressado para retornar a seus pensamentos. Fechou os olhos para desestimular o “homem estranho” sentado a seu lado a lhe provocar “diálogo fútil”. Ato contínuo, Mariana surgiu radiante em sua mente. Foi impossível evitar a torrente de emoção. Ele nutria forte admiração pela noiva que lhe era valiosa ao extremo – um sentimento confuso e perturbador. No seu mundo emocional, Mariana não passava de “uma amiga muito querida”, confidente a quem revelava tranquilo seus desencontros com a vida, em busca de conselhos seguros. Reconhecia ter sido num momento de fraqueza que cedeu ao charme angelical de Mariana, asseverando-lhe que já era hora de falarem em casamento. Cobrado sobre a data do evento, reagiu coerentemente com seu mais verdadeiro sentimento: “Vambora ver” – chavão que sempre usava para continuar “amassando barro”, com valor de um lacônico “em breve …”. Tirar férias, improvisadamente, e viajar para ver a família no Piauí, nada mais havia sido que uma fuga desesperada para refletir sobre a gravidade da situação. Casar? Agora é tarde! Já me comprometi a dar um neto para meu pai, logo, logo! Sebastião estava perdido em seus pensamentos em círculo. Sentia-se encurralado, sem saída. Para ele não havia a hipótese de perder a amizade de Mariana. Mas, casamento seria um preço alto demais. Sebastião despertou de seu pesadelo pelas manobras e sons próprios da aterrissagem, já no aeroporto de Brasília.
De volta à realidade
No saguão do Terminal de Passageiros do modesto aeroporto da nova capital da República, Besouro foi recepcionado por Mariana, exuberante em seu vestido colorido e cheia de manifestações amorosas. Abraçaram-se recatadamente, sem beijos, como era o padrão moral da época. Sem delongas, deixaram o local de mãos dadas. Ele, carregando a velha mala de madeira que o acompanhava havia muitos anos. Ela, a sacola trazida cuidadosamente por ele, com verdadeiras preciosidades regionais. Ambos moravam no Núcleo Bandeirante, onde chegaram ao anoitecer. O jantar daquela noite seria na casa da Mariana, conforme combinado, com a participação dos pais e do irmão. Besouro morava a pouco mais de quinhentos metros dali. Chegou para o jantar trazendo uma caixinha com doce de buriti e um frasco com doce de jaca. “Ambos, uma delícia” – asseverou ao futuro sogro. Pela primeira vez, Besouro estava com a família de Mariana. Havia natural desconforto para todos. Mariana era a única que demonstrava naturalidade, sua mãe era a mais tímida e a mais confusa – alternava o nome do rapaz com insegurança, hora Sebastião, hora Besouro; escapou-lhe até mesmo um Besouro Sebastião, provocando risos. Durante a refeição a temática recorrente não deixou de ser a Família Mogiana, a cidade de Teresina, a cultura local e os amigos. A falta de intimidade entre as partes resultava em pausas frequentes. Era sempre Mariana que intervinha com novo tema. No final do jantar, durante o cafezinho à mesa, o senhor Augusto, depois de pigarrear, fez uma abordagem-surpresa muito corajosa: “ Sebastião, minha filha nos falou da intenção que o senhor tem de nos pedir a mão dela em casamento. Enquanto esteve no Piauí, discutimos a questão e concluímos que estamos de acordo, de sorte que se considerem oficialmente noivos. Agora é só marcar a data do casamento. “ A conversa nocauteou o pobre Besouro que, “tremia como vara verde”. Os Gonçalves, pelo contrário, eram todos uma alegria só!
Pragmatismo feminino
Tendo sido decretado noivo, Besouro sentiu-se obrigado a demonstrar alegria, “em homenagem a Mariana. “ Seu real sentimento, porém, não passava de uma “profunda melancolia, misturada com raiva, pela impotência para reagir contra o golpe recebido. “ Chegou em casa em estado de choque. Apesar do cansaço da viagem, não conseguiu dormir. Os noivos passaram a tarde do dia seguinte juntos. Foram ao cinema, tomaram sorvete, encontraram-se com amigos e, finalmente, entraram em uma joalheria, onde Mariana escolheu, com notável independência, as alianças compradas e postas a uso imediato. Dois dias após, eis que Besouro retoma seu posto no Salão de Beleza. Crivaram-no de perguntas sobre a viagem de férias. Seu colega Joãozinho, tomado de espanto, soltou um grito malicioso e foi logo perguntando, enquanto lhe segurava a mão direita: “Besouro, tu noivaste contra quem? “ A farra durou dias, para desespero do noivo. Nos três meses subsequentes, tudo transcorreu sem dificuldades. Aqui e ali, Mariana avançava a conversa em direção ao casamento, enquanto o noivo aperfeiçoava sua habilidade em empurrar com a barriga. Besouro planejou dar a Mariana um marcante presente de aniversário. Para cada alternativa que idealizava surgia uma inconveniência. Na antevéspera da comemoração, resolveu consultá-la. Ora, a conjugação dos astros favorecia Mariana! Ela sem titubear respondeu: “Eu já escolhi o presente que eu quero. Mas, é surpresa para você. Almoçaremos em minha casa. Lá você me dará o presente. Combinado? “ Aquilo lhe pareceu muito esquisito. Mas, ao mesmo tempo, muito cômodo, o que lhe dava tranquilidade. Agradeceu sorridente. A vida de noivo corria mansa. Nada, no fundo, havia mudado, levando Besouro a elucubrar sobre a vida de casado: “Será que é igual à de noivo? “ Ele se afastava pouco a pouco da perspectiva de solteiro.
E agora?
A comemoração do aniversário da Mariana foi caprichada, regada a cerveja, batida de maracujá e, para os mais valentes, leite de onça. O rádio Philips sobre a mesinha da sala de visita estava sintonizado na Rádio Nacional Brasília AM que fazia desfilar uma seleta coleção de boleros. Além da família Gonçalves, Besouro já incorporado, dois casais de jovens vizinhos haviam sido convidados para o encontro. No final, Mariana sobe o tom da voz, bate com o cabo de um garfo em seu copo de cerveja vazio e deitou falação, desenvolta e cheia de graça. Agradeceu os parabéns recebidos, fez carinho na cabeleira do noivo, elogiou os pais, ressaltou o valor da família e dos amigos para finalmente dizer: “Agora, teremos uma surpresa. Uma magnífica surpresa – o meu presente de aniversário. Sebastião me disse que gostaria de me dar um presente do meu mais especial agrado – que gracinha, não é? Combinamos que eu mesma o escolheria. Pois bem, escolhi o presente que será, agora, anunciado por ele. O presente será a resposta pública que dará a esta minha pergunta: Sebastião, meu amor, em que dia nós vamos nos casar? “ O rapaz tomou um susto, deu um pulo na cadeira, esbugalhou os olhos, engasgou-se com saliva, sorriu amarelo e gaguejou feio. Mariana não perdeu o rebolado. Justificou a “timidez” do noivo, acrescentou que o ajudaria, sugerindo que o casamento “ocorrerá daqui a 45 dias, em 15 de abril – homenagem a minha sogra, Dona Salustiana Mogiana, que fará aniversário naquela data. “ Palmas de entusiasmo ecoaram na sala. Besouro, com inconfundível “timidez” agradecia os cumprimentos, com cara de “maria-vai-com-as-outras”. Um pensamento não lhe saia da cabeça: “Onde fui amarrar minha mula? “
O voo cego do Besouro
“Não é isso o que desejo para mim! “ Porém, frágil, não encontrava forças para se opor com assertividade à indesejável situação. Dúbio, vagueava entre suas incertezas e a vontade dominante da noiva. Seu rendimento no trabalho baixou a nível insustentável. Noites mal dormidas se sucediam preocupantemente. Apático no relacionamento, já ouvia questionamentos da noiva que esboçava insatisfação. Não obstante, os preparativos para o casamento prosseguiam como previsto. A menos de vinte dias do ato, Mariana decidiu compartilhar com a mãe suas inquietações crescentes. Trocaram observações feitas, analisaram fatos e decidiram tirar a limpo o que se passava, exatamente. A dúvida mais presente na discussão delas se referia ao desencanto do Besouro com Mariana: “alguma razão objetiva ou intricada questão psicológica, emocional ou até mesmo limitação física? “ Orientada pela mãe, Mariana foi à casa simples do Besouro, num final da tarde, disposta a um tira-dúvidas. Pelo plano estabelecido, a noiva seria insinuante e provocativa, tomando a iniciativa de chegar aos “finalmentes”. Exausta, retornou às 22 horas tão íntegra quanto estava ao sair de casa. Chocada, ela e a mãe confabularam até altas horas. Os argumentos usados por Besouro incluíam: Orientação religiosa (só depois do casamento), influência familiar (virgindade a todo custo), exaustão física, por excesso de trabalho. E assim rechaçou todas as investidas. Gentil, acompanhou Mariana na volta para casa e dela se despediu com um abraço afetuoso.
Basta! Adeus!
Ao retornar, Besouro sentia a cabeça pesada, o corpo insensível, confuso, sem horizonte, encurralado. O casamento estava marcado para acontecer em 10 dias e ele não sabia o que fazer: casar-se ou não? Num rasgo de clarividência diagnosticou-se como um “eterno insatisfeito com a vida. O problema não é o casamento; o problema sou eu. “ Esta ideia era nova na cabeça dele e estruturalmente perturbadora. Evoluiu para a pergunta que passou a se fazer, com insistência: “Qual a solução? “ Adormeceu por cansaço. Despertou ao meio dia da terça-feira e se deu conta de que não fora trabalhar na segunda-feira. Perdera conexão com a realidade; havia entrado em parafuso. Quarta-feira levantou-se cedo, como de hábito. Mal alimentado, sentia-se enfraquecido. Consultou o calendário da cozinha, rabiscou uma folha de papel. Saiu de casa às oito horas da manhã. Entrou na farmácia ABC, na Terceira Avenida. De lá foi à Agência do Correio e Telégrafo. Voltou para casa logo depois das nove horas. Passou pela cozinha para reabastecer seu copo d’água. Relutou em voltar à cama; finalmente cedeu. Deitou-se sem tirar nem mesmo o sapato. Abriu a caixa do remédio que comprara na farmácia e o tomou. Tirou do bolso da camisa uma folha de papel com o original dos dois telegramas “urgentes” que passou. O primeiro, dirigido a Mariana: “Não dá mais. Cancele o casamento, por favor. Esqueça-me o mais rápido que poder. Siga sua vida. Sebastião. “ O segundo era dirigido à mãe dele: “Cancele sua vinda a Brasília. Não haverá casamento. A culpa é minha. Estou exausto. Preciso dar descanso a meu corpo. Se não posso ser feliz, prefiro dizer adeus. Peço desculpas a todos. “ Com a mão esquerda amassou a folha de papel. Seu rosto transfigurado virou-se para a direita. Quando Mariana chegou do trabalho, às 18:30hs leu o telegrama dirigido a ela; mas, o texto era o destinado à quase-sogra. Correu aos prantos para a casa do Besouro. Forçou a porta da entrada e viu o corpo inerte sobre a cama!
* José Teixeira, Consultor Executivo.
9 Comments
Interessante e se agradável leitura
Caro Sérgio,
Seu julgamento me reconforta!
Adorei o texto! Muito interessante!
Estimada leitora, Vivyan Linhares
Obrigado por seu comentário. Animador!
Estimada leitora, Vivyan Linhares
Que bom que tenha gostado! Animador!
Caro Sérgio,
Obrigado. Seu julgamento é reconfortante.
Texto primoroso. Completa o texto original. Muita riqueza nos detalhes. Rico e fiel a imagens da época.
O besouro poderia ter outro fim….ou ainda vai ser salvo pela amada….
Adorei o texto e fico imaginando se hoje em dia alguém como o “Besouro” teria esse fim!!! Duvido!
Não imaginei que Sebastião chegaria a esse ponto !!!Bom texto!!!!!