Everywhere at the End of Time: A abordagem dos impactos da demência e alzheimer por meio da música
Everywhere at the End of Time é um projeto do artista experimental britânico Leyland James Kirby (conhecido pelo pseudônimo de “The Caretaker”). Lançado de 2016 a 2019, seus seis álbuns de estúdio expõem a progressividade da doença de alzheimer e demência por meio da sucessiva transformação evolutiva da distorção de suaves músicas de bailes da década de 30 nos estágios da vivência com o alzheimer e demência, identificando, experienciando e aceitando o fato de que todas as memórias do que um dia viveu-se, está lentamente se dissipando.
A edição completa da concatenação de todas as faixas de todos os álbuns (ditos também como “estágios”, em menção às ditas doenças) em um só resulta em um trabalho totalizando seis horas de duração, que apresenta a música com uma gama vasta de emoções afetando diretamente o ouvinte que engaja-se com as tênues, mas pertinentes, oscilações gradativas na sonoridade.
Considerado tal projeto a grande obra-prima de Kirby, Everywhere at End of Time se tornou inesperadamente um fenômeno viral na Internet há pouco tempo, revelando-se, inclusive, em muitos vídeos do TikTok como personagem principal em um desafio aberto para ouvir-se na íntegra as seis horas totais.
Até há alguns meses atrás, tenho de admitir que nunca sequer havia ouvido falar quanto à este projeto propriamente dito. Meu contato inicial com este, foi precisamente (mesmo que de modo indireto) através da divulgação deste em um vídeo do TikTok disponibilizado nos curtas da plataforma YouTube. Tratava-se unicamente de, como qualquer vídeo curto, de um viés geral quanto à este projeto, expondo e dando ênfase majoritariamente à dita duração de seis horas.
Decerto, permaneci imediatamente intrigado, refletindo de que modo um projeto musical com um tema apesar de comum no âmbito familiar e social de diversas pessoas, inusual no contexto musical, fosse capaz de estender-se em seis horas (e mais) de duração de modo que comovesse ao ouvinte. Além disso, naturalmente, como qualquer indivíduo, com um certo receio, questionei com uma pontada de pré-julgamento se cada segundo das seis horas, trinta minutos e trinta e um segundos de Everywhere at the End of Time eram realmente necessários para a constituição como um todo do projeto musical em seu âmbito, sobretudo, contextual.
E, com convicção, reitero que sim.
Cada segundo de cada álbum é importantíssimo para edificar o que Kirby almejou evidenciar em seu projeto.
Até mesmo o cru, vazio, abnóxio, silêncio.
Tentarei, ante o alcance de palavras, termos e figuras de linguagem da língua portuguesa, examinar o projeto apresentando-o em uma observação com um viés pormenorizado em geral com o máximo de primor possível, mas, certamente, nenhuma análise escrita jamais conseguirá se aproximar da verdadeira experiência de escutar por si Everywhere at the End of Time, sentindo no íntimo as emoções sucessivamente transformarem-se e guerrearem entre si, através da musicalidade tão sensível e humana de um assunto, apesar de trivial, excepcionalmente invisibilizado no meio artístico atual.
Parafraseando (e adaptando) o famoso ditado, “É ouvir para crer”.
Estágio 1: Daydream (Devaneio)
O primeiro estágio de Everywhere at the End of Time pode, em compêndio, ser caracterizado como “sereno e nostálgico” a priori, tendo em vista a vigorosa sonoridade da musicalidade de salão suave da década de 30. Os instrumentos calmantes provêem uma ambientação branda que tenciona incutir aconchego no ouvinte. No entanto, perfaz-se a presença do som de uma interrupção breve estática (que pode ser um motivo congruente para o que ainda há de vir nos próximos estágios) sugerindo que, embora tudo pareça sereno, ainda assim, há uma porção de insegurança sobre o amanhã. Este estágio explicita que as complicações psicológicas já se encontram presentes, mas, por ora, não a um grau alarmante.
A arte de capa assimila-se a um jornal ou papéis unidos de algum tipo, mas tampouco há plena certeza do que trata-se diretamente. Tal imprecisão mencionada simboliza este primeiro estágio como ainda encontrando-se presente a capacidade de distinguir-se a ilusão da realidade, mas não há uma consciência completa do que está sobrevindo. Assim, o primeiro estágio não está plenamente livre de problemas das doenças psicológicas, mas o mundo ainda é discernível e a possibilidade de viver a vida comumente prevalece.
Estágio 2: Denial (Negação)
O segundo estágio constitui-se em uma continuação do tema do primeiro estágio de “tranquilidade”, mas, neste dito estágio, a condição de perda da memória está se agravando. Mais ruído branco, cortes e borrões complementam este álbum, tomando como Norte o fato de que tais doenças “deterioram” o cérebro, ao passo em que a pessoa que vivencia aparenta agir como se esta se encontrasse em perfeita saúde. A música fraca de salão dos anos 30 ainda toca, mas está manifestamente perdida em um horizonte que distancia-se com o passar do tempo. Este estágio tem suas complicações notoriamente, não obstante, ainda demonstra resquícios do estágio passado como uma tentativa de fazer com que os bons tempos prolonguem-se. No entanto, apesar do tom incômodo, este estágio empalidece em comparação com o que está por vir posteriormente.
A obra de arte da capa deste álbum opera como uma perspicaz metáfora que espelha o processo dos meados da gênese da perda de memória. O vaso de flores está sendo essencialmente destruído, desfigurado e distorcido, mas as flores ainda estão vivas, assim como a pessoa que está passando por perda de memória. As flores também aparentam crescer em direções diferentes, o que indicaria que a localização de sua fonte de luz é desconhecida, uma vez que as flores sempre crescem em direção à luz sob a qual encontram-se. Isso ilustra a confusão das flores (e da pessoa afetada), pois sua mente não está integralmente presente, mas ambos ainda estão vivos e existindo como se nada estivesse errado.
Estágio 3: Reality (Realidade)
A realidade, de modo manifestamente acentuado, começa a se desmantelar completamente ao passo que os cortes e borrões começam a se tornar impetuosos e cobrem a maioria das músicas inteiramente. Sempre há uma sensação de dor e confusão, e a pessoa portadora [das doenças] enfim atinara que sua realidade está finando-se, juntamente de suas memórias. As melhores lembranças que possui ainda estão vagamente presentes, mas estão dissipando-se depressa. A mudança de tom neste estágio em específico é dramática e clivosa, pois os instrumentos musicais começaram a se repetir, se sobrepor e dissipar; como memórias tentando agarrar seu meio para a reminiscência. Às vezes, há cortes plenos sem som ou música, o que sugere que a pessoa está perdendo a própria capacidade de lembrar-se. Esta é a fase em que a realidade esvai-se e, aos poucos, apenas a ilusão ocupa a mente.
É patente sobretudo através desta capa que, além da música, a própria arte está tornando-se cada vez mais distorcida à medida que a realidade muda para uma ilusão quase cabal, mas ainda há uma sugestão de que algo tangível está ali. Esta pintura assimila-se à algum tipo de planta, mas as pinceladas tornaram-se tão violentas e rudes que é difícil discernir o que é. A mente, sendo incapaz de lembrar, distorceu-se tão profundamente neste ponto que é impossível fazer algo tão simples como o ato de identificar o que encontra-se presente à nossa frente.
Estágio 4: Rupture (Ruptura)
O quarto estágio consiste no ponto em que é fundamental aceitar o fato de que está ocorrendo uma perda extrema de memória e, a essa altura, é tarde demais. A música em si está agora em segundo plano, enquanto o ruído é reproduzido em primeiro plano. Sons altos e distorcidos angustiam a atmosfera com quase nenhum sentido (além de uma melodia fraca). Esta fase é o início de um longo final para o sofrimento do portador. Memórias especiais e serenidade são difíceis de encontrar entre todo o ruído branco e mensagens clamando através da disformidade. Quase nada de vívido resta, e a vida parece um borrão sem começo ou fim. Apenas distingue-se o presente, que vagueia continuadamente com o que parece ser apenas agonia.
Esta pintura que estampa a capa do quarto álbum parece-se com um retrato, mas tudo deteriora-se. Não há mais percepção de associação com humanidade; tudo foi esquecido. Apenas uma desfiguração do que restou está presente, sendo apenas sua forma cognoscível como humana. Esta pintura parece ser de alguém com cabelo comprido, mas a pele e o cabelo são feitos do que aparenta ser algum tipo de material mineral. Uma pessoa destituída de memória pode considerar que um humano pode ser feito de rocha sem características humanas, pois tudo em seu mundo é pura confusão.
Estágio 5: Horror (Horror)
Este decerto é o estágio mais assustador. Já não ouve-se mais nada além de sons impetuosos viciosos e a música torna-se agonizante aos ouvidos do ouvinte. A sanidade que um dia prevalecera se foi, e o que subsiste é dor e rotura. Este álbum em específico é profundamente incômodo de se ouvir e provoca durante toda sua trajetória um mal-estar imensurável. O objetivo principal perante isto é reproduzir a sensação através dos sons incógnitos e temerosos de que tudo está perdido e nada resta na mente, exceto puro temor. Há breves momentos em que a humanidade volta, mas, sem tardar, tudo rapidamente volta ao desalento e à tenebrosidade. A perda de memória [do portador] vigora com integral efeito, e quase nada resta, exceto ligeiros retornos absortos, unicamente para mergulhar novamente na confusão e angústia. A repetição nesta fase é de longe a coisa mais aterradora, já que a paz volta por alguns segundos, mas quando tudo volta, a agonia aural regressa com mais vigor. O portador já não possui mais nada, e este sequer tem uma noção de quando toda sua sanidade acabou outrora, porque o conceito da compreensão do próprio tempo se perdeu.
A obra de arte que compõe a capa deste álbum, sem receios, é de todas a mais abstrata. Todo o senso de familiaridade se foi e a capa do álbum o descreve como tal. Nada corpóreo ou reconhecível está realmente lá, além do material e da forma, e mesmo assim parece que nada de fato encontra-se manifesto; sem reconhecimento ou discernimento algum, e exiguidade mental pura. Tudo o que resta é intangibilidade sem realidade sobre o que o temor, medo, e angústia compõem. A mente está simplesmente processando sem qualquer senso de percepção.
Estágio 6: [Sem Título]
Este é o estágio final. É precipuamente um vazio de nada completo e cabal, mas com alguns distantes ruídos saturando o ar. A “música” não é composta de um cerne perturbador ao ouvinte, sendo esta apenas um ruído quiescente. Este estágio retrata o portador com o contínuo sofrimento perante a perda de memória à medida que se aproxima de seu último suspiro. Não há medo, pois simplesmente não sobrou nada. Conforme o estágio avança, os instrumentos lentamente sobressaem-se vagamente e uma sucinta sensação do primeiro estágio volta, no entanto, certamente, como este tampouco é o primeiro estágio, essas memórias se reduzem em pleno e absoluto silêncio. Quem encontrava-se sofrendo com esse atroz caso de perda da mente, memória e consciência, padeceu. Em seus últimos momentos de vida, o portador recapitulara os momentos que mais trouxeram outrora felicidade à este, conjuntamente do tempo passado à medida de todos os estágios em que sucumbiu à doença.
O indivíduo enfim encontra-se descansando e distante de toda sua dor.
A pintura que ilustra a capa deste último álbum se assemelha com a parte de trás de uma tela de pintura ou algo análogo. A capa deste álbum é a mais clara das seis por uma razão: O portador sabe que não consegue reconhecer a realidade, e tudo o que resta-lhe é a aceitação, e, depois, a morte. Este já não é capaz de discernir nada e sabe em seus últimos momentos em vida que sua mente se foi. Tudo se perdeu, e essa “calmaria depois da tempestade” só é mansa por um motivo: pela aproximação da morte, juntamente, de em pouco tempo, tudo desvanecer-se.
Considerações Finais
Este projeto decerto foi uma das formas de arte mais inesperadas e significativas que já me vi diante. As complexidades por trás de cada estágio, cada título e cada pintura representando a capa de cada álbum são singulares e isso captura a perda da mente em uma forma de arte que é excepcionalmente sensível. Os iniciais felicitosos devaneios, o horror e a aceitação por meio da música capturam de uma forma delicada e comovente a vida do portador de demência e alzheimer. Por mais que este álbum seja verdadeiramente apavorante, é uma verdadeira obra-prima que Kirby fora capaz de produzir. Tampouco consigo sequer expressar através de palavras minha admiração e respeito pelo artista em empenhar-se e ter êxito em tratar com precisão e sensibilidade de um assunto tão comum, mas despercebido aos olhos e ouvidos no contexto artístico contemporâneo.
Deixo, por fim, meu convite à você, leitor(a), para que ouça este projeto com seus próprios ouvidos, dado que, nem metade de tudo que expressei através de palavras neste artigo será capaz de aproximar-se da verdadeira experiência de amálgamas sensíveis que integram “Everywhere at the End of Time.”
*Com informações de Portal Medium