Dobradura de amor

Por Marianna Mafe

A gaveta não foi aberta por saudade. Foi por bagunça mesmo. Sabe uma daquelas faxinas de fim de tarde, quando a gente decide, sem planejamento, que vai resolver pendências que a vida inteira aceitou empurrar?

Esse era o cenário.

No meio de elásticos ressecados, botões órfãos e papéis sem nome, ela pareceu.

Uma carta. Escrita à mão, com uma caligrafia que já não existe mais.

O envelope amarelado, meio envergado nos cantos, parecia ter sido dobrado pela pressa e pelo cuidado, ao mesmo tempo.

Reconheci o remetente antes mesmo de abrir. E me deu aquele susto bom, como esbarrar com alguém querido que você achava que tinha se mudado pra sempre.

Li devagar. Como quem mastiga palavra por palavra.

A carta não dizia nada de espetacular.

Não havia um grande segredo, uma revelação, um desabafo, uma declaração.

Era só o cotidiano passado a limpo.

O conteúdo não importava tanto, mas aquele pedaço velho de papel remetia ao cheiro do café e da pipoca amanteigada; passava por uma partida de futebol entre Palmeiras e Cruzeiro; espiava uma briga besta e uma história boa.

Era a escrita de uma saudade qualquer, daquelas que não doem, mas permanecem.

E eu ali, no chão, com a carta nas mãos e o resto da gaveta escancarada, percebi: a gente passa tanto tempo tentando organizar a vida, arquivar memórias, dobrar sentimentos, que esquece como é bom reencontrar algo que não estava perdido, só quieto.

Esperando ser lembrado.

Guardei a carta de volta, mas não no fundo.

Coloquei na primeira divisão da gaveta.

Porque tem coisa que a gente não lê duas vezes.

Tem coisa que a gente relê pra se lembrar de alguém; de quem fomos — e se perguntar se ainda somos.

Para além da carta, uma constatação sem direito à discordância: quando não se tem mais a presença de um avô querido, o amor construído pode te encontrar em qualquer gaveta por aí.

Marianna Mafe é jornalista, sócia-diretora de uma agência de marketing e apaixonada pelas palavras. Entre uma campanha e outra, com humor e reflexão, se dedica a desvendar as histórias do cotidiano que estão ao nosso redor, mas nem sempre são percebidas.

Related post

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *