diário – reprodução

DIÁRIO DE UM SERVIDOR REPUBLICANO

Fragmentos – IV (Final)

O jornal Diário da Corte ao publicar o último bloco de Fragmentos (IV) do diário do Fred destacou o valor dos registros feitos por ele, avisando que o “capítulo” final “aborda fatos ocorridos entre março de 1964 e fevereiro de 1985”. Depois desta data, veio um longo tempo de silêncio ou de anotações de interesse pessoal ou familiar, apenas. Os assuntos densos em conteúdo, como de costume, revelam o cidadão consciente, atento e participativo, com pensamento claro e coerente. Especialmente, revela seu encantamento por inovações saneadoras da burocracia federal, alívio pela correção de rumos da vida nacional e preocupação com as “necessárias intervenções rigorosas na ordem jurídica”. Democrata confesso, foge de qualquer embate extremista. Estes Fragmentos falam de um período crítico da vida nacional: vêm do auge dos movimentos de esquerda e da reação cívico-militar de 31 de março de 1964, passam por todos os governos militares subsequentes, quando Fred exerceu cargos de relevo na Administração Federal, em Brasília; terminam na instalação da Nova República.

Maré montante

Março de 1964 – Atualmente é impossível trabalhar-se produtivamente, como servidor público. Esta verdade é geral. Na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, as ações do governo deixaram de ser tema central do dia-a-dia. Poucos servidores são engajados politicamente; mas, todos seguem a pauta do Congresso Nacional, da CGT, das Ligas Camponesas, do movimento de marinheiros e sargentos. Isto virou um inferno. Há uma revolução em curso? Aquele Comício do dia 13, na Central do Brasil, no Rio não foi normal. O Presidente da República, acompanhado de vários Ministros, inclusive militares, diante de uma massa compacta de mais de 100 mil pessoas, avançou em sua pregação “pelas reformas de base”.

Ali mesmo, perante o povo, assinou atos de desapropriação de refinarias de petróleo, decretou regras para desapropriação de “terras improdutivas”, às margens de rodovias e ferrovias federais. Leonel Brizola, cunhado do Presidente Jango e influente liderança política nacional, de esquerda, orador incendiário e arrogante – galvanizou a massa! A maioria dos meus colegas de trabalho está atônita com os acontecimentos. Há muita inquietação. Reina a incerteza. Poucos são os que abertamente se declaram contra ou a favor da esquerda ou da direita e seu crescente movimento opositor, com manifestações públicas de grande peso. A maré está subindo. Esta onda vai quebrar na cabeça de quem?

Dia 25/03/64 – A Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais levou hoje à sede do Sindicato dos Metalúrgicos, um forte aliado seu, mais de 1.500 sócios e convidados (líderes sindicais, estudantis e políticos) para comemorar o segundo ano de existência. Foi um bafafá dos grandes. O Ministro da Marinha havia proibido aquela reunião: mas eles desobedeceram. Um pelotão de marinheiros foi destacado para prender os líderes do movimento. Chegando lá, em vez de prisão, houve confraternização. E muitos discursos a favor da Associação, das Reformas de Base, com destaque para a Reforma Agrária “na lei ou na marra”. Tudo sob o comando do Cabo Anselmo, um sujeito terrível, de grande liderança entre eles, mais político que marinheiro; o próprio “subversivo”, como militares e mídia o classificavam (esse ainda vai aprontar muito). A situação ficou tensa. No começo da noite as notícias que circulavam eram claramente tendenciosas, conforme a fonte que a divulgava.

Uma era particularmente insistente: “Ato de indisciplina militar. Uma revolta inadmissível”. Faz pouco, foi divulgado que Jango anistiou os marinheiros e que o Ministro da Marinha havia renunciado. Acabei de ouvir o Repórter Esso das 22 horas: “Os marinheiros continuam amotinados e dispostos a fazer vigília cívica, pela democracia e pela liberdade”. Os militares são muito sensíveis a atos de indisciplina e de quebra de hierarquia. Vários oficiais superiores se declararam inconformados com “esta revolta dos marinheiros”. Um deles classificou a anistia dada por Jango como “inaceitável”.

30/03/64 – Os jornais de hoje continuam falando da programada reunião de Sargentos para comemorar o aniversário da Associação deles. Ao mesmo tempo anunciam que o Presidente Jango Goulart é convidado de honra e “confirmou presença”. Menos de uma semana depois daquela dos marinheiros? É … Aqui no Ministério, em Brasília, foi o assunto do dia, em todos os andares. Ouvi opiniões claras, tanto contra como a favor: “É hora de calar a reação” e outras semelhantes, porém mais radicais, especialmente vindas de seguidores do Brizola. Outros atribuíam espírito belicoso a Jango: “Está ficando louco! “ Os críticos da atitude janguista são contundentes e mais numerosos. Carmen me telefonou; estava assustada com o “clima de fim de festa” que percebia entre suas amigas. Muito zunzum sobre “uma iminente atitude militar”. Este foi o tema de colegas meus durante o almoço. Há muita “fumaça” no ar.

A onda quebrou …

31/03/64 – Os meios de comunicação divulgaram, logo cedo, informações segundo as quais o Gen. Mourão Filho, Comandante da Unidade Militar de Juiz de Fora, fortemente armado, marchava à frente da tropa rumo ao Rio de Janeiro para destituir o Governo. Foi seguido pelo Gen. Guedes, Comandante Militar de Belo-Horizonte. Consta que ambos avançam sem incidentes, recebendo adesões por onde passam. A adesão do Gen. Amaury Kruel, Comandante do II Exército, sediado em São Paulo, foi de grande peso. O fogo se alastrou em todas as regiões do pais. O Serviço Público parou.

01/04/64 – O Gen. Assis Brasil, Chefe da Casa Militar, havia convencido Jango de que o “dispositivo militar “ do Governo era forte o suficiente para aniquilar qualquer sublevação. Verdade ou ilusão, as tropas leais ao Presidente não deram as caras, até agora. Existem, mesmo? No meio da tarde, Goulart, em Brasília, partiu em avião militar para Porto Alegre, donde pretende comandar a “resistência”. Incontinente, o Senado Federal em sessão comandada por seu Presidente, Auro de Moura Andrade, declarou vago o cargo de Presidente da República. Em seguida O Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, foi empossado Presidente da República, como manda a lei. João Goulart estava oficialmente deposto!

Abril de 1964 – Desde o dia primeiro, as coisas estão acontecendo muito rapidamente. Afinal, é o desfazimento de um governo e a montagem de outro. No dia 2 vim ao Rio, por convocação expressa e taxativa da minha amada noiva, Carmen; eu a obedeci sorridente. Ela, agora, está em campanha cerrada por dois objetivos: ”Volte para o Rio e Vamos nos casar”! Vou resistir bravamente a voltar para o Rio. Penso que a data do casamento dá para negociar.

Os dias subsequentes foram de intensa movimentação. No dia 11 de abril o Congresso Nacional elegeu Castelo Branco para completar o mandato do ex-Presidente João Goulart, indo até janeiro de 1966. Em mensagem pública, por rádio e TV, o presidente eleito diz ao povo que: “Minha eleição pelo Congresso Nacional, em expressiva votação, traduz, sobremaneira, o pesado fardo das responsabilidades que sabia já haver assumido, ao aceitar a indicação de minha candidatura à Presidência da República por forças políticas ponderáveis, sob a liderança de vários governadores de Estado”. Concorreram contra ele: Juarez Távora, pelo PDC e Eurico Gaspar Dutra, pelo PSD.
Castelo Branco foi enfático, repetidas vezes, ao expressar ideias e falar de planos relativos à “restauração da legalidade, …revigoramento da democracia, … restabelecimento da paz, promoção do progresso e da justiça social“. Anteviu a entrega do “poder”, em 1 de janeiro de 1966, a seu sucessor, “a ser eleito pelo voto livre e direto do povo”.

Achei muito valioso o que li no discurso Presidencial na posse dos novos Ministros: “Há em seu meio eminentes cidadãos vinculados à vida partidária. Mas a formação de cada um deles é a segurança de que não colocarão a administração a serviço do seu partido, mas, sim, do Governo a que se comprometeram a bem servir. Certamente, a opinião pública do País pode honrá-los com a sua confiança”. E complementa a mensagem de estímulo aos novos ministros dizendo que o povo brasileiro “… não deseja de nós a rotina de uma administração tímida ou inoperante, mas a marca decisiva de uma obra que assinale um Governo evoluído, reformista e legal”. Não posso negar minha decidida colaboração a quem assim pensa.

Considero que o volume e o “modus faciendi” das batidas policiais e prisões que estão ocorrendo se distanciam, não raro, do curso regular da lei. Isto não é bom nem necessário. É verdade que os riscos para o país são muito altos e devem ser eliminados, a qualquer custo. Todavia, a Justiça dispõe de meios para fazer isto; é o papel dela!
Ontem (24/04/64), tomei posse no cargo de Consultor Jurídico do Ministério de Trabalho e Previdência Social, por indicação do meu amigo Jorge Mendes, principal Assessor do Ministro Arnaldo Sussekind, que me recebeu em seu Gabinete e deu-me claras e objetivas orientações para o trabalho. Fiquei entusiasmado. O desafio é muito grande. Acredito nas boas intenções dele. Serei um colaborador dedicado. Disse-me ele, textualmente: “Enquanto o senhor promover o estrito cumprimento da lei e do interesse do Poder Público, que é exatamente o mesmo do povo brasileiro, terá meu apoio”. Acredito nele!

Visão de conjunto

Instalado o Governo Castelo Branco, na segunda quinzena de abril de 1964, sentiu-se uma forte diferença: os temas políticos deixaram de permear o dia a dia da burocracia, projetos e programas reassumiram a preocupação central dos Ministérios, coesão e comprometimento das equipes voltaram a predominar, o clima organizacional, agora, é de sisudez, tranquilidade, ritmo normal de trabalho, foco em resultados e prazos. A assunção do poder pelos militares trouxe mudanças estruturais imediatas para o Serviço Público: normas mais rígidas, mais cobranças de resultados, mais controles operacionais, mais profissionalismo. Os servidores, no que lhes cabia, promoveram, espontaneamente, alteração de curso. Foi claramente observada a metamorfose nos processos de execução de despesas e controle orçamentário.

Choques “culturais” ocorrem, naturalmente. Fatos policiais repercutiam internamente; houve servidores públicos envolvidos em inquéritos, presos, foragidos, atemorizados em razão de suas vinculações ao quadro político anterior. Aqui e ali, ouviam-se observações feitas por colegas, querendo dizer que: “Afinal, houve uma revolução ou golpe – os Militares estão no Poder! “ Outros lançavam advertências: “Daqui prá frente vai ser assim; dureza! Milico não alisa! “ Visto o todo, penso que o governo militar começou bem e era respeitado; a adesão recebida foi alta. A esperança no rápido restabelecimento da normalidade da vida nacional é imensa.

Estamos em fevereiro de 1985. A “abertura lenta e gradual” anunciada pelo ex-Presidente Ernesto Geisel foi, objetivamente, concluída no dia 15, com a eleição de Tancredo Neves a Presidente da República, pelo Colégio Eleitoral (eleição indireta), tendo o Senador José Sarney como Vice-Presidente. A posse deles no dia 15 de março próximo será uma virada de página histórica: “Fim dos governos militares; início da Nova República”.

A iniciativa da derrubada de Jango foi tripartite: Líderes militares e Civis, com o apoio expressivo da população brasileira conservadora. O movimento empreendido e a fase inicial do governo militar foram guiados pelo binômio: “Deter a ameaça comunista e combater a corrupção do setor público”. O lume ideológico adotado foi a “Doutrina de Segurança Nacional”. De pronto, prevaleceu a ideia de que a intervenção seguiria o modelo adotado em outras ocasiões (militares interferem, corrigem rumos e vão-se embora!). Ainda no Governo Castelo Branco houve guinada promovida pela “linha dura” dos militares. Contrariamente ao que havia sido anunciado por Castelo, a eleição de seu sucessor foi indireta, pelo Colégio Eleitoral – não “pelo povo”. O eleito foi Costa e Silva – candidato dos militares. E assim foram os demais (Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo).

A Administração Federal, e por indução as Estaduais e as Municipais, sofreram choque positivo em períodos distintos. O Decreto-Lei 200, de 1967, trouxe normas modernas para o serviço público, implantando também orientações inovadores para a gestão pública. Teve larga repercussão. O programa de Reforma Administrativa renovou a face da estrutura organizacional do governo, simplificando, reduzindo custos, focado em eficácia. O Programa de desburocratização foi muito útil para dar agilidade aos processos operacionais e, especialmente, para simplificar a relação do cidadão com a burocracia oficial.

Com o desenrolar do tempo e moldados por fatos novos, os governos militares, sempre com a Doutrina de Segurança Nacional à mão, deram-se missões necessárias e até urgentes de grande interesse do pais. Assumiram postura de “governantes regulares”, focados no interesse comum da nação, atentos às reações populares e atraídos por manifestações de apoio. Tiveram sucessos claros: infraestrutura, energia – inclusive nuclear, petróleo, telecomunicações, indústrias, ensino superior, estradas, aeroportos, crescimento econômico (atingiram até 10% ao ano). No campo político, foram severos com opositores “subversivos”, especialmente os que aderiram às armas. Foram hábeis em controlar as discórdias internas dos grupos militares, mantendo a linha dura fora do Poder.

O Presidente João Figueiredo, impetuoso oficial de cavalaria, pouco antes de assumir o governo disse com todas as letras: “Quem for contra a abertura eu prendo e arrebento”. Coube a ele concluir a devolução do governo aos políticos, como planejado por Geisel. O balanço das realizações dos governos militares sugere que eles tiveram sucesso. Penso, entretanto, que o povo brasileiro, que os apoiou decididamente, com clara maioria – ao meu ver, não buscavam neles, apenas, bons gestores para a máquina pública (função técnica – relativamente simples); ansiavam por reformadores da nossa sociedade (função política com “P” maiúsculo – decididamente complexa e de difícil execução), com resultados de alcance profundo, largo, duradouro e autossustentável. Infelizmente, os militares vão deixar o poder, devendo ao povo brasileiro esta obra de interesse nacional. É de se lamentar.

*José Teixeira Executivo. Consultor.

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