Corretor traidor
Esta manhã, após enviar uma mensagem a um amigo, o escritor moçambicano Mia Couto, através do WhatsApp, recebi uma resposta um pouco estranha:
— Não posso falar agora. Estou no Consulado de Portugal a tirar o vestido.
— De quem?
— O meu.
— Estás a tirar o teu vestido no Consulado de Portugal?
— O visto! O visto! Foi o corretor…
Todos os dias o corretor ortográfico deixa alguém numa situação embaraçosa. Nunca um instrumento criado para corrigir os nossos erros suscitou tantos mal-entendidos. Nas redes sociais, há páginas e páginas dedicadas exclusivamente a compilar os equívocos mais hilários. Apenas dois exemplos:
— Filho, estou com saudades do seu pau!
— O que é isso, mamãe?!
— Pai! Queria escrever pai. Foi o corretor!
No segundo caso, um garoto escreve a uma moça que tem esperanças de vir a conhecer melhor:
— Ontem vi você na festa.
— E então?
— Gozei!
— ???
— Gostei! Desculpe, foi o corretor.
Por outro lado, os frequentes erros do corretor ortográfico passaram a ser a melhor desculpa para esconder os nossos. Eu próprio atiro sempre as culpas para o corretor ortográfico. Primeiro, passei a culpar o corretor pelos equívocos nas conversas nas redes sociais. Depois, pelos lapsos ortográficos, ou qualquer outro descuido gramatical, nas crônicas, contos e romances. Hoje atiro as culpas para cima do desgraçado, independentemente do assunto.
— Pai, deixaste queimar as torradas!
— Desculpa, foi o corretor ortográfico.
Até já tentei fazer isso com um policial, mas não resultou:
— O senhor ia em excesso de velocidade!
— Não fui eu, senhor agente, foi o corretor ortográfico…
O meu primeiro romance foi batido, tecla a tecla, numa velha máquina de escrever, daquelas que tilintavam a cada vez que se concluía uma linha. Nessa época, mil e tantos anos atrás, o corretor ortográfico vinha dentro de um frasquinho de vidro, e incluía um pequeno pincel. Sempre que cometíamos um erro passávamos o pincel pela palavra a corrigir, depois de o termos mergulhado no corretor, e ela ficava coberta por uma fina camada de tinta branca. O erro desaparecia. Então, datilografávamos em cima. Era um processo difícil, moroso e extremamente irritante.
Esta tecnologia primitiva, porém, tinha o imenso mérito de nos fazer refletir muito, antes de nos aventurarmos a escrever fosse o que fosse. A proliferação dos computadores pessoais fez com que passássemos a escrever de forma muito mais rápida e menos ponderada. Uma vertigem. As redes sociais aceleraram ainda mais este processo de degradação do pensamento.
Não tenho saudades das máquinas de escrever, aliás não tenho saudades de quase nada daquele meu remoto passado, mas sinto um pouco a falta do velho corretor ortográfico — e do tilintar da máquina no final de cada linha.
Na última mensagem que me escreveu, Mia Couto explicava que iria desligar o telefone. Precisava fazer fotos para o visto, e a cada vez que espreitava o WhatsApp começava a rir. Os burocratas não aceitam fotos de pessoas a rir em documento oficial. A burocracia, ao que parece, não aprecia o riso. A capacidade de nos fazer rir, contudo, é o que salva o maldito corretor.