Como a pirataria popularizou os jogos no Brasil
Que atire o primeiro controle quem nunca teve ou jogou um videogame pirata. Dos consoles aos jogos, o mercado paralelo de games fomentou a paixão dos brasileiros pelo entretenimento eletrônico. No entanto, esse mercado cinza e ilegal não ficou completamente no passado e ainda é existe na realidade de muitos brasileiros.
Em 2001, uma estimativa da IDSA (Interactive Digital Software Association) apontou que a pirataria no mercado de games representava US$ 2 bilhões perdidos para as desenvolvedoras. Ainda que seja uma cifra alta, na época, The Sims ultrapassou 2,6 milhões de unidades vendidas, enquanto GTA III alcançava 2 milhões de cópias. Também foi nesse período, entre os anos 2000 e 2002, que a Microsoft lançou seu primeiro Xbox, e a Nintendo estreou o Game Boy Advance e o GameCube. Além disso, as primeiras placas de vídeo 3D chegaram ao mercado.
Anos depois, em 2018, uma pesquisa revelou que as empresas perdem mais de US$ 21 milhões em faturamento por conta da pirataria. A cifra é menor do que no começo do milênio, mas ainda representa uma grande fatia. Em 2021, com os PlayStation 5, Xbox Series X e Series S como ápice dos videogames do momento, a pirataria ainda está presente entre os brasileiros, mas com uma força muito menor do que no passado — afinal, as grandes empresas como Sony, Microsoft e Nintendo fazem o máximo que podem para proteger seus consoles e jogos da ilegalidade.
Neste cenário, relembramos um pouco dos primeiros passos dos brasileiros com produtos piratas de games e como está a situação hoje em dia, mas em uma ótica um pouco mais brazuca.
O começo da nossa história
Podemos dizer que tudo começou nos meados de 1969, quando a Taito do Brasil fabricava fliperamas no país. Devido às taxas tributárias altas e os custos de licenciamento, a empresa brasileira criou cópias dos famosos arcades. Na questão técnica de hardware e até das peças, as grandes máquinas eram iguais, mas por fora elas recebiam cores e estampas diferentes; praticamente uma skin.
Henrique Sampaio, co-fundador do Overloadr e apresentador da série de podcast Primeiro Contato, explica que nesse período, os líderes governo militar e outras associações nacionais criaram impeditivos de importação para que a indústria brasileira crescesse a ponto de se tornar um país exportador de tecnologia e conhecimento. Com as cópias, “foi uma forma de aprendizado da nossa indústria, natural ao desenvolvimento econômico e industrial”, diz.
Voltando para o caso da Taito, a fabricante conseguiu muito sucesso com a venda das máquinas, que eram quase uma pirataria oficializada, alcançando a marca de mais de 25 mil fliperamas produzidos. Mesmo encerrando suas operações em 1985, o fundador Abba Kogan ainda abriu a Taicorp Comércio e Empreendimentos Ltda., fechada em 2008, e a Playland, em parceria com o Playcenter para a gestão de parques por todo o país.
A queda na popularidade dos fliperamas tem um “culpado”: os consoles domésticos. Com a chegada oficial do Atari 2600 em 1983, ainda que alguns mais privilegiados já tivessem o videogame, sair de casa para jogar se tornava algo mais casual. Nesse cenário, os gamers brasileiros também deram seu jeitinho.
Os videogames licenciados no Brasil eram muito caros, então para se ter um, era preciso contar com um conhecido que viajasse para os Estados Unidos ou comprar os contrabandeados do Paraguai. Com isso, algumas empresas brasileiras criaram versões paralelas de consoles e cartuchos, na cara e na coragem.
Uma das mais bem sucedidas no universo das cópias foi a Gradiente. A fabricante nacional de eletrônicos criou o Phantom System, uma versão do NES (ou Nintendinho, para os mais chegados). Em dado momento, a Nintendo of America descobriu o que estava acontecendo e entrou em contato com a empresa. A conversa começou com acusações, mas, eventualmente, os executivos brasileiros receberam a proposta de encerrar a fabricação do console e virarem representantes da Big N no Brasil, a partir de 1993.
Outro momento marcante na história é o Mônica no Castelo do Dragão. O jogo desenvolvido pela TecToy era basicamente o mesmo jogo que Wonder Boy, da SEGA, mas com os personagens dos clássicos quadrinhos de Maurício de Sousa e falas em português. O game de plataforma para o Master System teve muito sucesso, por se tratar de algo muito nacional e que expressava uma parte da nossa cultura.
Discos
O pé na porta da pirataria foi muito impulsionado pela substituição dos jogos em cartuchos para as mídias em CDs, e posteriormente os DVDs. Com as novas mídias, criar cópias ficava mais fácil e mais barato, substituindo a cópia de dados e a gravação em chips protegidos por um plástico por simples Ctrl+C e Ctrl+V (com a permissão do exagero na expressão) nos CDs.
Os primeiros passos foram dados com o desbloqueio do PlayStation 1. Não era fácil encontrar versões originais dos jogos, principalmente em regiões afastadas das capitais e outras cidades. Essa demanda superior a oferta gerou uma espécie de direcionamento para as cópias piratas, que eram as únicas opções.
Já no PlayStation 2, a brincadeira chegou a outro nível, fomentando um cenário que se “retroalimentava”. Um exemplo claro e que estoura até hoje é o Bomba Patch. O “100% atualizado e que é ruim de aturar” nada mais é do que uma versão modificada de Winning Eleven (antigo PES e atual eFootball, da Konami), mas com mais foco em times e jogadores brasileiros e sempre deixando os elencos mais completos possíveis.
Pra quem acha que o PS2 morreu, a versão 2022 do Bomba Patch do PlayStation 2 ultrapassou a marca de 100.000 downloads…
— Equipe Bomba Patch (@bombapatchgeo) October 14, 2021
Outros acontecimentos marcantes para a comunidade gamer brasileira foram as versões legendadas e localizadas de jogos como GTA San Andreas, God of War, Resident Evil 4 e tantos outros que ficaram ainda mais famosos por permitir que as pessoas joguem e entendam o que está acontecendo. “Isso [as versões não oficiais] tem a ver com criatividade, com a vontade de impor uma marca e trazer o jeitinho brasilero para as coisas e criar uma acessibilidade”, define Pablo Miyazawa, jornalista especializado em videogames e cultura pop.
Já no Xbox 360, a situação começou a mudar um pouco; o PlayStation 3 não teve a mesma popularidade no mercado paralelo. Com a crescente dos jogos online, desbloquear um videogame limitava a biblioteca dos jogadores — isso porque, ao fazer isso, o acesso às funcionalidades online ficava indisponível. Ainda assim, muitos conseguiam driblar isso e usar contas norte-americanas para aproveitar a Live Gold e outros jogos online.
Muitos donos de Xbox 360 destravados relatavam a chegada da temida luz vermelha, que indicava um erro fatal no hardware do videogame, e problemas no canhão de leitura eram comuns por “forçar” mais o videogame. Só que estes riscos não impediram a popularidade e a procura pelos mais corajosos; ainda é comum encontrar por ai camelôs e feiras vendendo mídias piratas do console da Microsoft. Ao contrário do PS2, o 360 não teve tanta força nas adaptações dos fãs para o português, já que nessa época muitos lançamentos recebiam a localização para o português do Brasil com mais frequência.
Mesmo com toda a demanda, a geração do PlayStation 4 e o Xbox One tiveram outra vida, “operando mais na legalidade”. A partir desta geração, a Sony e a Microsoft criaram mais barreiras para impedir o destravamento dos consoles.
Para ter uma noção mais recente da situação atual, vale mencionar a Pesquisa Game Brasil de 2020, que informou a popularidade dos consoles em território nacional (antes do lançamento da nova geração). Por conta do histórico com a pirataria, o PS2 e o Xbox 360 ainda continuam muito presentes nas casas dos brasileiros. 38,4% dos gamers de console possuem o PS4, enquanto o Xbox 360 ocupa o segundo lugar, com 29,4%, contra os 22,5% do Xbox One. O PS2 aparece em terceiro lugar, com 23,6% de popularidade, enquanto o PS3 tem 22,6% e o PS4 Pro, 11%.
“Os consoles conseguiram, em momentos diferentes, penetrar no imaginário popular muito por conta de terem uma facilidade maior de acesso e ter uma forma de pirataria que permitia acesso a mais jogos”, justifica Miyazawa, como um dos fatores da popularidade desses videogames domésticos.
Na visão dele, não há uma relação de causa e consequência em que o sucesso se deu pela pirataria de fato, mas talvez teria demorado um pouco mais para que os videogames ganhassem alcance no Brasil. “O fato de haver pirataria para eles ou não, não os tornava mais desejados, o negócio é que com ela, mais pessoas sentiram vontade em investir no videogame sabendo que jogariam mais coisas nele”, justifica Miyazawa.
Por outro lado, Sampaio acredita que os jogos parelelos provavelmente ajudaram na popularização do PS2 e do Xbox 360, “mas isso vale para qualquer tipo de produto, especialmente num país desigual como o Brasi”. Para justificar seu ponto, ele reforça que o mercado de games é dominado por empresas estrangeiras que priorizam países desenvolvidos, como Estados Unidos, Inglaterra e Japão, “onde consoles são mais compatíveis com a realidade dos salários locais”.
E nos PCs?
Nos computadores, a história começou um pouco parecida, com empresas nacionais copiando a engenharia da Apple e da Microsoft. Algumas companhias “acertaram”, pois criavam máquinas compatíveis com as gigantes norte-americanas. Já outras tinham uma jornada mais difícil por criarem sistemas muito únicos e que não funcionavam com softwares e jogos existentes.
Nessas máquinas, a situação é um pouco diferente até hoje. É mais comum e simples baixar jogos piratas nos computadores porque exigem menos processos e não dependendo de uma instalação de um chip no hardware, por exemplo. Mas é claro que, além de ser ilegal, este caminho também oferece riscos, umas vez que nunca se sabe a procedência do arquivo e ele pode ser um vírus.
Algo que foi muito popular nos anos 1990 eram as revistas acompanhadas de CD-ROMs. Com jogos oficiais para PC, mas algumas vezes mais antigos, o produto era tributado como publicação impressa, então eram vendidos em bancas de jornais por preços bem menores. Eles competiam com os paralelos, algo que Henrique define como uma preferência ao oficial do que ao pirata, já que “o preço cabe no bolso e há uma disponibilidade ampla”.
É no PC também que nasceu outro assunto que gera muita discussão: os emuladores. Os consoles virtuais não oficiais são usados para reproduzir jogos. Basta os interessados baixarem os softwares dos videogames e os títulos que querem. No entanto, essa história tem dois lados.
Um deles é o de preservação histórica, já que essas ferramentas podem permitir acesso a games que não são mais comercializados oficialmente. “As empresas, em sua maioria, não são exatamente eficientes na manutenção das suas histórias e seus legados, principalmente as que atuaram fortemente nos anos 80 e 90, e que não conseguiram manter o status nas décadas seguintes”, explica Pablo.
Ele diz que os emuladores são muito usados por historiadores, especialistas e entusiastas para ter acesso a algo que deveria ser mais liberado pelas criadoras. “Muitas delas [empresas] estão aproveitando agora a onda de remaster e remakes e a de consoles virtuais para vender os jogos antigos como nostalgia”, completa o especialista.
Sampaio também acredita que os emuladores têm importância para a preservação histórica: “No caso de jogos e outros tipos de software que não são mais comercializados, a emulação é sim importante para preservá-los e permitir acesso a eles”.
Por outro lado, desenvolvedoras de pequeno e médio porte podem se prejudicar com essas tecnologias. Henrique destaca a Night Dive, cujo o foco é preservar games antigos. “Se todos seus jogos fossem pirateados, provavelmente ela perderia sua capacidade de investir em projetos mais ambiciosos, como o desenvolvimento de tecnologia ou o remake de System Shock”, enfatiza. Em casos assim, a própria empresa consegue manter um trabalho de manutenção, sem que a comunidade precise fazer isso por eles.
O consumo inocente
Como dito no começo desta matéria, o mercado nacional teve diversas versões próprias dos produtos, o que fazia com que os consumidores nem soubessem que aquilo não era 100% oficial. “De certa forma, todo mundo que jogou videogame dos anos 80 aos 90 consumiu produtos piratas, o que torna tudo mais interessante”, conta Pablo.
O jornalista relembra que, com a chegada dos produtos oficiais, a vontade do público era de ter os videogames e cartuchos de verdade. De forma comparativa, podemos dizer que os produtos seguiam (e seguem) quase a mesma lógica de roupas de marca, em que ter uma peça oficial, para muitos, passa a ser um status e um desejo.
A pirataria popularizou os jogos no Brasil ou não?
Sampaio defende que sim, e que “provavelmente [a indústria no país] não teria o tamanho que tem hoje sem a pirataria porque ela está entranhada na nossa história com tecnologia”. Porém, vale separar a parte cultural e a mercadológica.
“Do ponto de vista do usuário, a pirataria promove acesso e ajuda a popularizar. Em termos de mercado local, porém, a pirataria pode ser um grave problema, pois não desenvolve a categoria, especialmente se estivermos falando de empresas nacionais de pequeno ou médio porte, como era o caso da Brasoft, MPO e Tectoy nos anos 90”, explica Henrique, ainda dizendo que essas mesmas companhias nacionais culpam a pirataria por suas próprias saídas do mercado.
Na visão de Sampaio, hoje em dia, o acesso aos jogos no geral foi mais popularizado graças ao smartphone e jogos gratuitos (free-to-play), mas para quem gosta dos consoles, o mercado paralelo ainda é uma opção. “A pirataria acaba sendo uma alternativa porque continuamos sendo um país tão ou mais desigual quanto aquele do fim do século XX”, explica.
Hoje em dia, a pirataria ainda existe e é consumida, mas com menos intensidade nos consoles e mais foco nos computadores. Não vemos PlayStation 5 ou Xbox Series X desbloqueados e não existem camelôs vendendo cópias falsas de jogos das gerações mais recentes, algo que era muito comum na época do PS1, PS2 e Xbox 360. Com o Nintendo Switch, o assunto é outro, porque o mercado ilegal conseguiu desbloquear o console (sob a condição de bloquear o acesso a internet) e criar emuladores de games exclusivos do console para PC.
“Os produtos antigamente tinham mais barreiras para chegar aos pontos de venda. Hoje é muito mais fácil por ter importação de produtos pela internet,”, explica Miyazawa, sobre fatores que começaram a diminuir a pirataria. Tanto agora quanto no futuro, vivemos em um cenário em que as empresas sabem da pirataria e tentam combatê-la, enquanto quem produz e consome as cópias vai continuar fazendo isso. “Enquanto houver produto, haverá uma forma de reproduzi-lo, seja como for”, finaliza o jornalista.
Baú do tesouro
Se você quiser ir ainda mais a fundo da história dos jogos piratas no Brasil e também nos primórdios da nossa indústria, nós recomendamos duas produções. A primeira é a série documental Paralelos, produzida pelo jornalista Pedro Falcão para a Red Bull Brasil. Os vídeos contam com entrevistas dos executivos da Taito, Gradiente e da TecToy sobre o começo de tudo, além de depoimentos dos rappers Emicida, Rashid e Fióti sobre crescer com os games paralelos.
A outra recomendação é a série de podcasts Primeiro Contato, coproduzido por Henrique Sampaio, o site independente Overloadr e a B9 Podcasts. Os episódios narram como os computadores e videogames chegaram ao Brasil, entre os anos 1980 e 2000, com diversos entrevistados de múltiplas áreas para mostrar como o cenário político, econômico, social e cultural impactaram essa indústria.
Os links para as recomendações podem ser encontrados no final deste artigo.
O que diz a lei nacional
A Lei Nº 10.695, de 1º de julho de 2003, prevê detenção de três meses a até quatro anos ou o pagamento de multa contra a violação de direitos autorais. Nos artigo 1º, dos parágrafos 1 ao 3, a norma condena a reprodução “total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente”.
O documento diz ainda que, confirmada a infração, as autoridades podem recorrer a apreensão dos produtos e todos os aparelhos usados na fabricação dos bens pirateados. Após o julgamento, o juiz responsável pelo caso pode solicitar a destruição ou a doação à “Estados, Municípios e Distrito Federal, a instituições públicas de ensino e pesquisa ou de assistência social”.
A sanção foi aprovada pelo então Presidente da República José Inácio Lula da Silva e o Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos e publicada no Diário Oficial da União, em 2 de julho de 2003.
*Com informações do Canaltech