Carro Alegórico

Falávamos sobre temas triviais num final de tarde. Entre os assuntos, naturalmente, perspectivas de uma viagem durante o carnaval. A razão mais comum para essas viagens era brincar a festa no Rio ou em alguma cidade do interior, onde a alegria era garantida. Quem não aderia aos folguedos de Momo, dizia preferir descansar, dormir até o meio-dia. De minha parte, sempre gostei desse grande evento, mesmo que não me sentisse capaz de participar como um folião que dança, pula e se diverte a valer. Por outro lado, a sorte de uma memória privilegiada me permitia cantar os sambas, frevos, marchinhas, com muito fôlego e disposição. E imaginava um dia poder integrar algum dos cortejos num carro alegórico onde poderia, sentado ou me valendo de um apoio, fazer a minha dança especial, do abdômen para cima, com mão e braços arremessados ao infinito, impulsionados pela voz grave que carrega com emoção e paixão aquelas muitas músicas.

Um dos amigos, de sorriso incontrolado, parecia mais feliz do que de hábito. Isso suscitou a curiosidade e, questionado sobre o motivo de sua explícita exultação, nos informou que fora convidado a integrar um dos carros alegóricos.

Em Belo Horizonte, o carnaval, naquele tempo, era comemorado com desfiles de agremiações na Afonso Pena. Como se depreende, às vezes de forma equivocada, “a grama do vizinho é sempre mais verde”. O que implica dizer que os mineiros não valorizavam o evento. Tanto que poucas pessoas se interessavam por participar ou mesmo assistir. E o nosso amigo, feliz da vida, havia sido convidado. Isso nos causou grande satisfação por ele. Foi ovacionado e começamos a fazer um exercício de imaginação de como seria, qual seria a fantasia; se seria destaque ou apenas componente; se já conhecia de cor o samba da Escola; quem mais participaria? Enfim sua alegria nos contagiou.

Faltavam ainda oito dias para o desfile e, enquanto isso, alguns já se preparavam para acompanhar a Banda Mole que, por tradição desfilava em dois sábados: um antes do dia das mães e outro antes do próprio carnaval. No início era uma festa bem familiar. Um cortejo delicioso que se concentrava na Bahia com Goiás e Rio de Janeiro, na praça em frete ao antigo cinema, hoje um banco. Dali seguia em subida até a região da Savassi. Era comandada pela famosa Banda do Bororó. Tive a felicidade de, ainda que claudicante, acompanhar o cortejo ladeira acima, enquanto todos os pesos do coração, da vida, eram deixados pelo trajeto, pois que, senão, não chegaria ao final da jornada. Tenho memórias maravilhosas daqueles desfiles.

Na sexta-feira que precedeu ao carnaval, nos encontramos outra vez para mais um fim de tarde de conversa. Qual não foi a nossa surpresa quando nosso amigo, folião convidado, apresentava uma expressão um tanto amarga, desiludida. O convite seria para empurrar o grande carro, na parte de baixo do equipamento, oculto pelas alegorias…

Aquele ano encerrou uma época de desfiles. Houve muito mal-estar e denúncias de que alguns dos “empurradores” eram PcD.

Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.

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