Agora vou Rasgar o Verbo

Um querido amigo, nos idos de 1981, tinha o hábito de usar várias vezes a mesma roupa, às vezes rota, sem se preocupar com a aparência. Ele, alto para os padrões brasileiros, tinha a fala pausada, quase lenta, gestos comedidos e um jeito de quem estava acima dos modismos, do lugar comum. Era uma referência para mim.

Minhas calças, frequentemente esgarçadas pela fricção do tecido na parte de trás da coxa esquerda, prensado entre o aparelho ortopédico e os diversos materiais dos assentos, bancos, cadeiras e até muros baixos, às vezes se rasgavam nesse ponto. O tecido lateral aos joelhos também se dilacerava pelo efeito tesoura que a dobradura do aparelho proporcionava, com o modelo antigo de articulação. Isso deixou, temporariamente, de me preocupar, quando o conheci. A diferença (sempre há uma diferença!) é que ele optava por aquela aparência. Eu apenas me sujeitava. Nele parecia ativismo social; em mim aparentava mendicância.

Dois momentos de comerciais na tv mexeram comigo, me obrigando a reavaliar determinadas posturas. Num deles, ambientado em uma festa jovem, um belo rapaz, modelo de sucesso, rasga acidentalmente sua calça jeans em algum móvel. Não se abalou. Continuou como se nada houvesse acontecido. Outros rapazes, na ânsia de se espelhar, também, agora intencionalmente, produzem rasgos nas próprias calças, avaliando que se tratava de uma tendência. Na outra propaganda, um jovem se apresenta, no fim da mesa, em reunião empresarial, com camisa incomum. É percebido pelo líder que, inicialmente sob olhares de reprovação dos pares, elogia: “- Bonita camisa, Fernadinho!”. Ao final do curto vídeo, uma frase verdadeira e marcante do locutor: “– O mundo trata melhor quem se veste bem!”.

Já em 1973, Stanislaw Ponte Preta, mais conhecido pelo pseudônimo Sérgio Porto, teve gravada pelo Quarteto em Cy, a polêmica e genial marcha-rancho “Nabucodonosor”, demonstrando que os rasgos indicavam decrepitude, derrota: “… rasgado e amassado, de Nabucodonosor.”

Antes ainda, em 1972, a música do espetacular porto-riquenho Benito de Jesus (Nuestro Juramento), lançada por José Feliciano, “La Copa Rota”, dá consistência ao sentimento de perda, de fracasso amoroso indicado pelo vinho servido em um copo quebrado. E esta música, magistralmente regravada pelo grupo americano La Santa Cecília e, em versão brasileira, pela ótima dupla de irmãos Christian, que partiu recentemente, e Ralf, refere-se ao uso de um copo “roto”, como o ponto máximo do sentimento de fracasso, de abandono.

A referência inclusive é tratada cientificamente num experimento conhecido como Teoria das Janelas Quebradas ou “Broken Windows Theory”. Esse estudo demonstra que o desleixo, a desordem tem forte impacto nos níveis de criminalidade.

O que dizer de “Rasguei o teu retrato”, bolero de Cândido das Neves (Índio), gravado em 1951, pela poderosa voz grave (baixo) do saudoso Vicente Celestino, em que a maior pena que se avalia imputar a quem lhe faz ingratidão é rasgar “o seu retrato ajoelhado aos pés de outra mulher”.
Com estas considerações, resolvi “rasgar o verbo” propondo às PcD que, sempre que possível, valorizemos também a nossa apresentação pessoal.

Mário Sérgio

Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.

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Site: Mário S. R. Ananias – Sobre Viver com Pólio (mariosrananias.com.br)

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2 Comments

  • interessante a colocação do auto cuidado, icluir-se, importar-se com sua aparência! Me fez lembrar de uma frase que minha mãe, sempre muito sábia, costumava dizer: “quem não se enfeita, por si se enjeita”.
    Não existe uma regra para se enfeitar, na verdade o essencial é se cuidar, se sentir acolhido, inclusive por se mesmo!
    Adorei a leitura! Parabéns Mário Sérgio Rodrigues Ananias.!

  • interessante a colocação do auto cuidado, icluir-se, importar-se com sua aparência! Me fez lembrar de uma frase que minha mãe, sempre muito sábia, costumava dizer: “quem não se enfeita, por si se enjeita”.
    Não existe uma regra para se enfeitar, na verdade o essencial é se cuidar, se sentir acolhido, inclusive por se mesmo!
    Adorei a leitura!

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