DIÁRIO DE UM SERVIDOR REPUBLICANO
Fragmentos – III
O ano de 1963 foi marcante na vida de Frederico Albuquerque. O noivado com Carmen trouxe-lhe felicidade transformadora. Profissionalmente, decidiu transferir-se do Rio para Brasília e teve sucesso na empreitada. Como cidadão, lutou intimamente pela preservação de seu equilíbrio no julgamento dos fatos políticos, que se sucediam com velocidade e radicalismo impressionantes. Operários e estudantes, de braços dados, atuavam freneticamente a favor de mudanças sociais, por meio de proselitismo, greves, tentativas de interferência em organismos governamentais e seus programas. As reformas de base eram a bandeira principal do grupo instalado no governo federal e suas ramificações estaduais e municipais, que orientava e liderava a ação dos “progressistas” e estressava a coexistência com os “reacionários”, que também eram muitos – arremedo “tupiniquim” da “guerra fria” que assolava o mundo. Fred, como servidor público, mantinha-se alheio àquele processo dicotômico, deplorado por ele, sem conotação ideológica, pelas “consequências negativas para a máquina administrativa federal”. Sua meta profissional era prioritária: trabalhar em Brasília! “Este desafio tem a minha cara – repetia ele aos amigos que o questionavam. Lá, serei mais útil ao pais que no Rio. Pelo que dizem, a modernidade da cidade é atraente e repousante. Provavelmente, a evolução da carreira será mais rápida e mais vigorosa“. Com determinação, foi à busca da oportunidade sonhada. Vamos segui-lo!
Alçando voo …
Três dias atrás, no dia 21 de junho de 1963, o Ministro Ézio de Almeida, da Viação e Obras Públicas, a que está subordinado o DNVT, foi substituído pelo Deputado Federal Esperidião Machado. Por uma felicíssima coincidência, ele nomeou o advogado Flávio Zenha como seu Chefe de Gabinete. Bom camarada. Eu fui apresentado a ele, faz pouco mais de um ano, na comemoração do aniversário de sua esposa, prima querida da Carmen. Acho que poderá me ajudar a ir para Brasília, onde está sediado o Ministério, salvo exceções cariocas, como acontece com outros. Essa bagunça reinante não é chocante; mas, há outras bem mais graves.
Meu último dia de trabalho no DNVT foi ontem – 26/07/61. Fizeram-me uma festinha de despedida. Alguns colegas de outras áreas compareceram, por amizade a mim. Muitos abraços, votos de felicidades, brincadeiras. Houve gozações, também: “Qual é o motivo do desterro? Está querendo desmanchar o noivado. Fugindo do casamento, hein …?!” Confesso que tive momentos de emoção, especialmente quando o Procurador-Chefe, publicamente, me qualificou com “servidor exemplar”. Acho que exagerou. Sei que terei um final de semana agitado. Já na terça-feira tomarei posse em Brasília, na Consultoria Jurídica do Ministro Esperidião Machado (Obrigado, Dr. Zenha!). Carmen anda nervosa. Ela quer ir a minha posse; já combinou tudo com a prima, com quem ficará hospedada. Eu estou com tudo e não estou prosa.
Crítica do momento
O mês de agosto de 1963 foi de intensa aprendizagem, sob todos os aspectos. Viver em Brasília, efetivamente, requer espírito de pioneiro. A cidade é um amontoado de improviso, ainda em construção. Á noite, a temperatura tem estado muito baixa; o dia, normalmente é de temperatura alta. A poeira vermelha levantada pelos redemoinhos incomoda muito; com ela sobem folhas secas, gravetos pequenos, papéis e outros objetos leves, rodopiando desnorteados, como a procurar uma saída, às cegas. Impressiona-me quanta gente fala tão mal da cidade; se dizem infelizes, mas continuam morando aqui. Haverá sinceridade na fala deles? A amplidão dos espaços me chama a atenção. A sensação de solidão é inevitável. Brasília é para gente centrada, sem grandes problemas emocionais. Estou gostando muito de morar aqui. Mas, não tiro os olhos do panorama nacional. Para onde marchamos? O Poder Executivo está com todas suas energias dirigidas às “reformas de base”, mesmo sem ter projetos a respeito. Elas se constituem em bandeiras exclusivamente político-ideológicas, com objetivos difusos e inexequíveis, apesar do envolvimento social não desprezível, cumprindo papel de divisor ideológico da sociedade nacional. O Legislativo é a grande caixa de ressonância do Executivo. As forças sociais, então em fermentação, crescem a olhos vistos, agitam o pais, acentuam a dicotomia esquerda x direita. Os avanços concretos são poucos. A unidade nacional deixou de ser um valor desejável. Os envolvidos puxam a corda, na esperança de que se rompa a seu favor. Até quando?
Está difícil trabalhar para o Poder Público. Nos dias atuais, na minha área profissional, as ingerências externas são fortes e decisivas. Os contendores são mais importantes que os fundamentos das contendas. Isso abala os pilares jurídicos. As greves fazem parte do nosso dia a dia, por questões setoriais ou gerais. Estamos numa situação de “greve pela greve; o importante é atuar. “ O campo está presente e ativo: “queremos reforma agrária, na lei ou na marra! Viva as Ligas Camponesas! “ A confiabilidade das instituições está reduzida, trazendo como consequência natural a instabilidade. A pressão política sobre o aparelho estatal cresce enormemente. Brasília é prova disto.
Chego a pensar que a corrupção cedeu lugar para a agitação-político-social. Os órgãos estatais respiram “reformas de base: “agrária, universitária, bancária, fiscal, urbana, administrativa. “ Bastam essas para envolver a maioria esmagadora da população brasileira. Além disso, certos grupamentos organizam temas setoriais para usá-los como instrumento de “mobilização de classe”, como foi o caso recente da “Revolta dos Sargentos” e outros graduados, em Brasília, no dia 12 de setembro. Cercaram o Congresso Nacional. Assumiram a Base Aérea. Dominaram o sistema de comunicação, isolando a capital federal do mundo. Prenderam inúmeras autoridades, inclusive o Presidente da Câmara dos Deputados, revoltados em razão de uma decisão do STF contrária ao reivindicado direito de concorrer em eleições para cargos públicos (legislativo e executivo). Foi um dia de grande desassossego.
Enfrentando a realidade
Fui designado para ficar no Gabinete do Ministro no Rio durante a segunda quinzena de outubro. Ali há processos em demasia estocados, sem andamento. Os interessados aumentaram a pressão por solução. Ele precisa de alguém “de confiança e experiente”, disse-me. Gostei da ideia. Já acertei minha programação pessoal com Carmen, que soltou um “gritinho” de alegria. Eu também estou com saudade.
Desta vez, constato na prática a inutilidade que é esta unidade do Ministério, remanescente no Rio: pura sinecura, desperdício de dinheiro, fonte de insatisfação geral, em ambiente de trabalho pachorrento. A capital do pais é Brasília! Aja-se conforme o interesse público, cumpra-se a lei. É isso o que estou fazendo com os processos embolorados, aos montes em gavetas e estantes, frutos da incompetência burocrática e falta de senso profissional. O final da quinzena está chegando e a limpa de processos estará concluída, “sem choro nem vela”. Dona Filomena, uma colega, respeitável funcionária, provavelmente uma das últimas representantes da geração “Maria Candelária” – aquela que “pulou de paraquedas na letra O”, por pistolão safado, passando à frente de barnabés dedicados, íntegros e produtivos, não cansa de elogiar meu ritmo de produção. Logo, logo se queixou de dores na mão direita, de tanto escrever despachos de encaminhamento dos processos, que passaram a andar. Gentil, me dizia: “A culpa não é sua, Doutor. É que sofro de artrose! “.
Terça-feira, dia 22, no final da manhã, por mensagem telefônica, me foi transmitida “orientação superior” para receber, na tarde daquele mesmo dia, o Deputado Federal Honório Dante. Político muito influente no Rio, com base no subúrbio carioca, tem fama de valente e arruaceiro. A prudência sugere ser melhor não o ter como inimigo, nem mesmo adversário. O arsenal dele, real ou imaginário, é pesado e tem uso corrente. É homem sisudo e de pouca fala; sua barba bem talhada ajuda a compor sua imagem de enigmático e insensível. Tenaz defensor de seus interesses. Tivemos uma conversar franca: “O pleito do seu amigo, Deputado, só tem um defeito – não apresenta razões objetivas para que o Ministro anule a decisão de não pagar o reajuste reclamado. “ E ele ainda pode apresentar as tais razões? – Questionou-me o visitante. Respondi-lhe secamente, com convicção: “Em homenagem ao senhor, abrirei exceção! “ Ele insiste: “E vai acatá-las, não é? “ – perguntou com certo enfado. Entendi que era hora de encerrar a conversa; sempre gentil, acrescentei: “É meu dever acatar razões apresentadas pelas partes, se condizentes com a realidade, inerentes à causa em exame, na conformidade da lei, respeitado o interesse público, sem agressão aos legítimos direitos dos pleiteantes. Assim será neste caso, também”. O Deputado abriu um sorriso sarcástico, enquanto me dizia ser eu um homem inteligente. Despediu-se de mim, dando-me a ponta dos dedos da mão esquerda, flácida. Na sexta-feira não retornou para apresentar as razões do pleito, como ficara combinado por nós. Não creio que retorne para tratar do mesmo assunto.
Até quando?
Em jantar de família, no Rio, encontrei-me com Flávio Zenha. Falamos rapidamente sobre o trabalho que eu havia concluído com, segundo ele, “sucesso e excelente repercussão”. Agradeci e nos voltamos aos presentes, já envoltos em acalorada e franca discussão sobre a situação política do país. Ninguém estava satisfeito com o rumo dos acontecimentos. Jango, pessoalmente, foi responsabilizado pela falta de controle da situação. Brizola foi duramente criticado. Flávio foi o primeiro a se retirar, deixando uma mensagem de consolo: “Tudo vai voltar ao normal, mais breve do que achamos”. Carmen me cochichou convite para “passear no calçadão da Praia de Copacabana. “ Nós nos retiramos, sem interromper o entusiasmo dos que debatiam o futuro da Pátria. Dois dias depois, retornei a Brasília, cansado dos fantasmas políticos que passaram por mim na estada carioca. Comparada ao Rio, Brasília era um oásis de paz e serenidade. Torço para que tudo volte ao normal, o mais rapidamente possível.
Continua: Fragmentos – IV (final) serão publicados no domingo, dia 03/10/21
*José Teixeira
Executivo. Consultor