Não, o mel não é feito do vômito das abelhas
A fabricação da guloseima de fato envolve passar o néctar por dentro do corpinho dos insetos. Mas ele fica numa bolsa separada – e não chega a ser digerido
Em tempos de fake news, até as abelhas são vítimas de informações falsas. Uma delas dá conta de que o mel seria feito a partir do vômito das abelhas. Esse mito é uma ofensa ao trabalho desses insetos, que ao longo de milhares evoluíram uma sofisticada técnica 100% natural de conservação de alimentos. Para esclarecer isso de uma vez por todas, vamos entender como as abelhas fabricam o mel.
Tudo começa no campo, com a colheita do ingrediente principal. As plantas precisam atrair as abelhas para suas flores para que façam a polinização. Por isso, elas oferecem uma recompensa para os seus visitantes, que é o açúcar, a principal fonte de energia das abelhas. Ele é geralmente colocado em lugares estratégicos na flor e oferecido na forma de néctar, que nada mais é do que uma solução aguada com bastante carboidrato.
As abelhas sugam esse néctar com a língua de flor em flor e a transportam para o seu ninho em um estômago especial que fica dentro do abdômen. Uma vez na colônia, elas compartilham o néctar com outras operárias e voltam a campo para buscar mais. Por sua vez, as abelhas que recebem o néctar compartilham o alimento com o restante da colônia – e que sobra é guardado. Na época das grandes floradas, sobra muito!
Essa etapa de ingerir e depois golfar o néctar que dá margem para a ideia de que as abelhas vomitam o mel. Mas calma. Vamos aprofundar a explicação.
Como não há flores disponíveis o ano inteiro, as abelhas precisam armazenar açúcar, principalmente para sobreviver ao inverno, enquanto esperam o aparecimento de novas floradas. Sem o alimento, elas podem morrer em questão de horas.
Não é fácil conservar um líquido doce sem estragar. Há muitos microrganismos interessados nesse carboidrato todo. Para evitar esses comensais indesejados que podem estragar o alimento, as abelhas-africanizadas (Apis mellifera), usam uma das técnicas mais antigas de conservação de alimentos: a desidratação. (Essa espécie de abelha é a mais usada para a produção comercial de mel no mundo. É aquela amarela listradinha que todo mundo conhece.)
As operárias ingerem e regurgitam uma gota de néctar repetidas vezes, provocando a evaporação da água. Fazem isso dentro e fora da colmeia. Neste momento elas adicionam substâncias produzidas por si mesmas que ajudam na conservação do mel – como o peróxido de hidrogênio, que é um forte agente bactericida.
É essa etapa que deu margem para a lenda de que o mel vem do vômito do inseto. Mas as abelhas possuem um órgão especial, chamado de estômago de mel, que fica dentro do abdômen, e funciona como uma bolsa. Uma válvula impede que o conteúdo passe para a seção seguinte do sistema digestivo, o estômago verdadeiro, que é onde a digestão realmente acontece.
Diferentemente do vômito, o néctar expelido não é mal cheiroso, nem está em processo de decomposição: pelo contrário, suas propriedades naturais, como aromas e substâncias benéficas, são plenamente preservadas.
Em paralelo a esse processo de ingestão e regurgitação do néctar, as abelhas batem as asas de forma sincronizada para criar uma corrente de ar que ajuda a tirar ainda mais água. Ao final desse trabalho, o néctar, que chegou na colônia com 25% a 40% de concentração de carboidratos, vira um mel viscoso, com 80% de açúcar. A Apis mellifera reduz a umidade a um nível tão baixo que bactérias e leveduras não conseguem se reproduzir – e o mel fica estável ao longo do tempo, sem fermentar.
Espécies de abelhas sem ferrão não desidratam o mel tão bem, provavelmente por causa das condições naturais das suas colônias – que geralmente são construídas dentro de cavidades pré-existentes (em árvores, por exemplo). Esses espaços são bem fechados, mais difíceis de ventilar e possuem um ar bastante úmido. Por isso, a quantidade de água que permanece no mel, acima de 20%, permite que microrganismos se proliferem ali.
Isso não é necessariamente ruim. Na verdade, a fermentação também pode ser uma estratégia de conservação de alimento – como bem exemplificam os muitos alimentos humanos que passam por esse processo propositalmente, de iogurtes a pães.
Não conhecemos os detalhes químicos do processo de fermentação que ocorre nas colmeias. Em linhas bem gerais, o que os microorganismos fazem é transformar parte do açúcar do néctar em álcool e gás carbônico. Depois, na presença de oxigênio, o álcool se torna ácido acético. Vulgo vinagre. É por isso que geralmente encontramos bolhas ou um pouco de espuma dentro dos potes de mel. Também é por isso que o mel das abelhas sem ferrão costuma ser mais azedinho.
É bem provável que outros processos metabólicos mais complexos também ocorram ali – e existe a possibilidade de que esses processos confiram ao mel substâncias antibióticas e antioxidantes, dentre outras moléculas úteis do ponto de vista farmacêutico que podem estar relacionadas ao uso tradicional do mel como medicamento. Há muita pesquisa em andamento nessa área.
Outra diferença entre o mel da Apis mellifera e o mel das abelhas sem ferrão: enquanto a Apis estoca seu mel em favos de cera pura – o que faz com que o sabor do mel se mantenha estável ao longo do tempo –, as abelhas sem ferrão estocam sua guloseima em recipientes feitos de uma mistura de cera com própolis chamada cerume, que ajuda na conservação por longos períodos.
A cera vem das próprias abelhas: é secretada por glândulas presentes nas operárias jovens. Já o própolis é produzido a partir da resina que elas coletam em algumas plantas. Elas misturam esses dois elementos e fazem o cerume – que é o material de construção não só dos potes de mel, mas do ninho como um todo. Esses potes de cerume funcionam como barris de carvalho no processo de fabricação de vinhos. Com o passar do tempo, vão passando ao mel aromas e substâncias provenientes do própolis.
Como o mel das abelhas sem ferrão tem um pouco mais de água e envolve processos biológicos complexos em sua fabricação, a melhor forma de conservá-lo em casa é na geladeira, para que mantenha todas as características originais do alimento. Já o mel das abelhas-africanizadas pode ficar em temperatura ambiente – e sua validade é de anos.
Não tenha dúvida: se o mel fosse feito a partir do vômito das abelhas, pode ter certeza que ele estragaria em pouco tempo – e não seria tão saboroso.
*Com informações da Superinteressante.