diário – reprodução

DIÁRIO DE UM SERVIDOR REPUBLICANO

Fragmentos – II

As festas de final de ano, em 1961, trouxeram trégua à agitada sequência de fatos políticos recentes, especialmente: a renúncia do Presidente Jânio Quadros; a resistência político-militar à posse do Vice-Presidente João Goulart (Jango), em razão de suas claras tendências esquerdistas; a implantação negociada do Parlamentarismo, com Jango Presidente; as cabeçadas de um governo desorientado e insatisfeito com o regime que lhe fora imposto; a crescente  atuação sindical e estudantil; a intensificação dos efeitos da guerra fria na vida política brasileira.  O jovem Frederico Albuquerque, com interesse redobrado, acompanhava tudo. Servidor público, testemunhou as imediatas repercussões nas hostes burocráticas federais. A incerteza reinante originou inquietação em seus colegas da Procuradoria do DNTV – Departamento Nacional de Vias Terrestres, também. Cresceu sua insatisfação funcional, que o atiçava à busca de novos desafios com perspectivas mais convincentes. Como se isto não bastasse, seus conflitos pessoais tornavam-se mais importantes, requerendo tratamento para não se constituírem em problema. Ele sabia o que queria e admitia ser necessário reordenar o pensamento, para não perder o norte. Queria ser leal ao Estado, com competência, dedicação, probidade. No dia 31 de dezembro, foi saldar Iemanjá no Posto 5, em Copacabana. Levou um buquê de lírio, que carregava com a mão esquerda colada ao peito. Ao pipocar do primeiro foguete da meia-noite entrou no mar com o pé direito, deu três passos, lançou as flores à sua deusa e beijou ardentemente a amada Carmen. Fred tem a palavra!

Acertando o passo

O Procurador-Chefe, Dr. Lauro Fonseca, convocou os Procuradores para reunião, que começou logo depois das 10hs da manhã de hoje, 3 de janeiro de 1962. Só compareceram quinze. Os oito ausentes estavam de férias, de licença maternidade, em atividade externa, inclusive no Fórum. O Fausto nunca chega na hora, nem nos botecos onde, ocasionalmente, vamos tomar chope depois do expediente.

O Chefe saudou a todos de forma muito camarada, contou piadas, perguntou como tinham sido as festas. Agradeceu e elogiou coletivamente nosso desempenho no ano anterior. Falou com visível orgulho burocrático da nossa produção em 61. Citava com gosto as estatísticas de processos judiciais, agravos e recursos. Quantas causas ganhas! Minimizou as perdidas. Valorizou muito os acordos feitos com as partes, especialmente os relativos a desapropriações para a realização de obras. Relembrou alguns casos complicados, resolvidos favoravelmente. Pediu colaboração continuada no ano que se inicia. Canhestramente, falou mal de Brasília e se esforçou para dizer que não via sentido na transferência de funcionários para lá. Mencionou e justificou as prioridades do DNVT, com destaque para aquelas que envolvem a Procuradoria. Encareceu o apoio de todos às unidades responsáveis pela execução delas. Queixou-se da inflação crescente e pediu redução de despesas, dizendo que as recomposições orçamentárias seriam duvidosas, neste exercício. O último assunto abordado foi o momento político nacional, terminando com alocução pragmática: “Cidadãos conscientes das nossas responsabilidades, certamente queremos ter participação ativa no debate das ideias e na prática da política. Todos têm meu estímulo para que se conservem atuantes. Entretanto, sejamos competentes, também, para preservar nossa neutralidade no exercício funcional, respeitando o tempo e o local de trabalho, as diferenças interpessoais e a liberdade ideológica de cada colega. Este é o caminho da paz comunitária, do respeito a cada um dos cidadãos demandantes de serviço, do equilíbrio e neutralidade da fiel interpretação dos direitos de que devemos ser vigilantes e defensores, por dever de ofício. “

O desfile de carnaval de 1962 foi entusiasmante. Portela venceu por mérito e samba. Um desbunde! No geral, se for para torcer, sigo a Mangueira. Mas, este ano, a campeã arrastou multidões – Carmen e eu incluídos. Carnaval é terapia psicológica para mim. De sexta a quarta-feira fecho para balanço.

O Pesadelo do Gigante

O tempo está passando célere. Começou a Semana Santa, ontem, 15 de abril. Logo mais vai começar a Copa do Mundo. Depois da vitória de 1958 (Suécia) – com direito a estrela na camiseta da Seleção Nacional, nós nos julgamos os melhores do mundo, sem rival. É muita pretensão! Vamos ver logo mais, no Chile …

Não entendo de política e menos, ainda, de politicagem. Mesmo assim, posso dizer que a vitória do Brasil na Copa do Chile ajudou a reduzir as tensões nacionais. O Parlamentarismo está se saindo muito mal. Tancredo Neves não tem o apoio necessário para conduzir a bom termo o Governo. Jango atrapalha muito; é cheio de confusão.

Dia a dia, a máquina administrativa do Governo Federal se enfraquece: falta autoridade, reina o improviso, o dinheiro é muito curto, a manutenção das rodovias é precária ou inexistente e elas se degradam a olhos vistos. No DNVT, as equipes técnicas estão desmotivadas e o pessoal de apoio sem meios materiais para manter a qualidade do trabalho. A motivação despenca. A pregação do meu chefe para nos abstermos de envolvimento político não teve eco. As ditas “reformas de base” transformam-se em tema obrigatório permanente, recheando as disputas, esquerda versus direita, reacionário contra progressista, nacionalista x integrista e vai por aí. O mundo virou uma dicotomia, gerada pela Guerra Fria, em permanente agravamento; o Brasil, também. Aqui, instalou-se um “estado de greve” generalizado, que tudo conturba, afetando pesadamente a normalidade da vida do pais.

O Barulho do Vespeiro

O asfaltamento da estrada Rio-Bahia continua, apesar dos pesares. É a maior, a mais importante e a mais onerosa obra em execução. Passaram por mim, como procurador, dezenas de processos envolvendo empreiteiras – contratos, reajustes, aditivos, renovações. Nem sempre o exame deles ocorre pacificamente; há empreiteiros arrogantes, daqueles com “rei na barriga”, falando grosso. Alguns são assim por desvio de personalidade, apenas; outros, por estratégia para fazer prevalecer suas intenções impublicáveis. Estes e os sibilinos são os mais frequentes. Nos últimos seis meses tive sérios desentendimentos com dois deles. Meu dever é seguir o que diz a lei, o que manda o contrato e defender o interesse público. Rechaço insinuações com brandura angelical e firmeza férrea. O entrevero ocorrido na sexta-feira passada foi exceção. O representante de tradicional empreiteira me fez perder a calma; fui levado a pedir a ele que se retirasse da minha sala. Meia hora depois, o Procurador-Chefe me chamou, querendo explicação do episódio. Tive que abrir o verbo.  Ele me ouviu civilizadamente, fez-me perguntas e terminou nosso encontro afirmando: “Você tem o meu apoio. Parabéns. Se quiser tocar o caso para a frente, represente contra ele, pessoalmente, e contra a empreiteira. Parabéns por sua reação. “ A postura que ele adotou nega fundamento às maledicências que circulam corredores a fora. Dois dias depois, voltou a me chamar. Desta vez, sorridente, deu-me a ler uma carta daquela empreiteira em que se refere ao episódio como um “mal-entendido”, faz elogios ao corpo dos Procuradores, qualifica-me como “servidor competente e zeloso, merecedor de respeito e admiração”.Por fim, apresenta desculpas. Mais uma semana, o tal representante, por intermédio da Secretária da Procuradoria, pediu para falar comigo. E tudo foi resolvido dentro da lei.

Os fatos foram muito comentados por colegas da Procuradoria. Houve gente do “setor de obras” que testemunhou a favor de “uma das nossas melhores empreiteiras”. Para mim, o mais curioso foi a abordagem feita por um funcionário da área de pessoal: “Dr. Frederico, eles são gente boa. Até nos ajudam a fazer a festinha de fim-de-ano.“ Será que o errado sou eu? – pensei diversas vezes. Não! Tenho convicção de que agi corretamente.

Decidir, agora!

O tempo está passando e eu não evoluo. Reconheço que tenho arrepios quando comparo o que ganho com o resultado do meu trabalho: o balanço produção – salário está desequilibrado. Não dá para continuar assim. Essa situação, penso eu, é generalizada e se agrava dia a dia, pela instabilidade política, que resulta em apatia no Serviço Público. O parlamentarismo é apontado como a causa de todas as mazelas e paga o pato sozinho.

Faz pouco, no dia 6 de janeiro de 1963, o “tudo ou nada” contra o parlamentarismo venceu o plebiscito com o apoio de 85% dos eleitores do Brasil. Assim, foi reimplantado o presidencialismo. E agora?

Eu tive a ilusão de que mudaria os rumos da minha vida no correr do ano de 1962. Ledo engano. Nada fiz neste sentido, apesar do meu sincero desejo. O ano de 1963 se arrasta improdutivamente. Estou em crise existencial. Preciso fazer esforço concentrado para dar uma guinada na minha vida. Não passa deste mês de maio. No próximo final de semana, vou acertar-me com minha querida Carmen. Ela é fundamental para mim; portanto, só decido com a adesão dela ao que tenho na cabeça. Esta vai ser uma parada federal que temos que vencer juntos – eu e ela!

Sexta-feira, 10 de maio de 1963 – Jantei com Carmen na Churrascaria “A Camponesa”, em mesa apropriada para uma conversa sobre nosso futuro. Abrimos os trabalhos com uma excelente batida de maracujá. Depois bebemos cerveja. Comentamos minha crescente insatisfação profissional. Repassamos minhas razões, como se fossem recentes. É tempo de agir – disse-me Carmen. Encorajado, retomei Brasília como alternativa de vida. Que bom, ela teve reação bem mais branda que de outras vezes (Não me esqueço que ela recusou meu convite para noivarmos: “só se você tirar Brasília da cabeça”). Desde então, melhorou muito!

Ao final do jantar concluímos objetiva e claramente: Pedir demissão do emprego, não! Transferir-me do DNVT para outro órgão público, no Rio, não traz vantagens. Adotar Brasília como solução requer mais reflexão: “Como ficaria nosso namoro, nosso futuro, na cidade que ainda é uma incerteza? “ Avançamos animadoramente! Sinto-me aliviado!

Sábado, 11 de maio – Acordei feliz. Liguei para Carmen e a convidei para irmos à praia. Recebi um sonoro não e uma chamada à realidade: “Nada disso! Temos que continuar nosso papo. Nossa vida está em jogo”. Fui buscá-la em casa para sairmos. Passamos o dia juntos, retornando às 18hs. Pouco mais de duas horas depois, já estávamos jantando no tranquilo e elegante restaurante do Hotel Ouro Verde, em Copacabana. Lá mesmo tomamos a decisão pela qual eu ansiava: “Pedir transferência para Brasília”. Carmen, inteligente e decidida, me relembra: “Como você observa, agora concordo que continue com Brasília na cabeça … então!?” Nosso instante de ternura foi interrompido pelo garçom ao colocar a meu lado a conta que eu lhe havia pedido. Ah! Por favor, minha noiva quer um chá – disse-lhe eu! Nós dois rimos alegremente. Saímos de lá para a boate Le Bâteau. Era 1,30 da manhã quando a deixei em casa.

Domingo, 12 de maio de 1963. Almocei na casa de Carmen, com seus pais e os dois irmãos menores. Saí de lá oficialmente noivo e morto de feliz! Amanhã, começa a contagem regressiva para organizar minha transferência para Brasília. Estou confiante…

Continua …

José Teixeira. Executivo. Consultor

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