DIÁRIO DE UM SERVIDOR REPUBLICANO
Fragmentos – I
O Diário da Corte, prestigiado órgão de imprensa da capital da República, propôs a Dona Carmen, viúva do Dr. Frederico Albuquerque, publicar registros das memórias dele, agrupados em três publicações, qualificadas como “fragmentos”, por serem trechos esparsos, minuciosamente selecionados dentre inúmeros escritos. Uma primeira manifestação sobre o assunto apareceu no décimo domingo, após sua morte. Ali foram feitos comentários gerais sobre a pessoa do Fred, colhido prematuramente pela morte inesperada. Durante a semana subsequente, a seção de Cartas do Leitor, do jornal, trouxe muitas opiniões sobre a matéria publicada, todas favoráveis e elogiosas. O editor-chefe, Etelvino Linhares, recebeu telefonemas de agradecimento da família e de muitos amigos do Fred. Todos gostaram de saber que ainda seriam publicados três outros grupos de registros, Fragmentos I, II e III, quinzenalmente, nos domingos, sendo este o primeiro. Com linguagem simples, ele nos conduzirá pelos bastidores da burocracia federal, em momentos intensos, reveladores de fatos e valores da época em que suas memórias foram escritas. Como cidadão atento, não deixou de lançar seu olhar arguto sobre fatos políticos, políticas públicas e manifestações da sociedade. Vale a pena conhecer as reflexões desse Servidor Republicano.
Da alegria ao espanto
Hoje (16/ 10/1959) fui empossado como Procurador do DNVT – Departamento Nacional de Vias Terrestres, no Rio de Janeiro, aprovado em concurso público feito pelo DAGSP – Departamento de Administração Geral do Serviço Público. Tudo é novo para mim, inclusive a felicidade que me deixa risonho. Lotaram-me na Procuradoria do órgão, sediado na Avenida Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Encerrado meu primeiro dia de expediente, dirigi-me à Igreja Nossa Senhora da Candelária para agradecer a Deus. Rezei contritamente e depositei um óbolo na caixa de madeira, ao lado do altar-mor. Antes de chegar em casa, fui ao Bar do Ópera para comemorar com alguns amigos. Dois deles eram funcionários públicos, que me cobriram de conselhos, dicas e sugestões. Que bela sexta-feira!
A primeira semana de trabalho efetivo está sendo dedicada integralmente ao meu “treinamento de iniciação”: leitura de leis, decretos-lei, decretos, portarias, manuais, além de conhecer colegas, visitar unidades de serviços da Presidência e Diretorias. Fiquei muito impressionado com a Lei 1711, de 1952 – Estatuto dos Funcionários Públicos. As engrenagens da burocracia ou da “burrocracia”, como dizem alguns, me deixam assustado. Conheci o “Seu Manoel”, da Seção de Distribuição (de processos?), um apaixonado por carimbos (vários tamanhos, formatos, cores) em perfeita ordem, que me lembraram soldadinhos de chumbo. Como ele, muitos outros me chamaram a atenção. A maioria dos homens usa paletó, que fica pendurado em cabide portátil, ao lado do “birô”, só vestido em reuniões, para receber visitas ou quando vão ter com o chefe. Aprendi o que significa o tal do “empenho”, na execução orçamentária – uma inutilidade sagrada. A assinatura do ponto é o suplício do “barnabé”, do qual ão poupados os chefes e os doutores. Descobri que existem castas e privilégios no serviço público. Daí resultam os protegidos (“especialmente as protegidas” – diz o descontraído Walter Duarte, prestes a se aposentar), os preteridos e os perseguidos. Meus colegas bacharéis em direito me receberam com simpatia e camaradagem. Os outros funcionários me tratam bem; mas, friamente. O treinamento me agrada. Sinto-me estimulado. Darei o melhor de mim. Tenho na cabeça a ideia de ser um verdadeiro ‘Servidor Público”, aquele que trabalha com afinco, dedicação e lealdade, visando o bem coletivo.
Nesta segunda-feira começa de fato meu exercício funcional. Fui o primeiro a chegar na Procuradoria. Eram nove e meia quando o Procurador-chefe, a quem estou subordinado, me chamou para conversar. Queria me conhecer, saber do treinamento, dos meus interesses como funcionário, e outras informações de menor importância. Já no final, me perguntou de supetão: “Você fica conosco ou pretende entrar na onda da dobradinha? “ Fiquei confuso, apesar de saber que ele se referia ao programa de incentivo do governo JK para levar funcionários federais do Rio para Brasília, que em breve será inaugurada. Terminei dizendo que seguiria a orientação dele. Senti que ele gostou da minha resposta. Como carioca, fiquei assustado. Trocar a praia pelo cerrado não está nos meus planos.
Novo Alvorecer
Brasília foi inaugurada hoje – 21 de abril de 1960 e declarada a nova capital do Brasil. O resultado disso, tudo indica, será ruim para a cidade do Rio de Janeiro. Mas, sem dúvida, excelente para o pais. Fiquei emocionado com a solenidade de inauguração, que acompanhei pela Rádio Nacional. Senti vontade de ir trabalhar lá. Não é pela “dobradinha”, apesar de ser um bom dinheiro a mais, muito bem-vindo para quem está pensando em se casar (Ah, minha linda Carmen!). Sobretudo, é o desafio que me encanta. Sou jovem, disposto a tudo. O batalhão de críticos da transferência da capital do pais para o Centro-Oeste, aí incluída a Diretoria do DNVT, é grande e poderoso. Penso que a História dará razão a JK.
Nestes últimos três meses, li abundantemente sobre a NOVACAP e conversado com muitos colegas, inclusive de outros órgãos, sobre o dilema: Rio ou Brasília? O prato da balança pende para a nova capital. Falta pouco para eu tomar a decisão de pedir transferência. Acontece que minha amada Carmen não gosta dessa ideia. Faz quinze dias que lhe propus noivarmos. Ela recusou: “Só aceito se você tirar Brasília da cabeça! “- disse-me ela.
Jornais, rádios e televisão têm-se ocupado grandemente da campanha eleitoral para a Presidência da República. A eleição ocorrerá no dia 3 de outubro deste ano de 1960. O candidato Ademar de Barros não diz a que veio; não empolga nem seus próprios conterrâneos paulistas. O povo, por pilhéria, diz que ele “Rouba mas faz”, em alusão a atos de corrupção que lhe são imputados, em São Paulo. O Marechal Lott é cidadão correto; mas, está no lugar errado – ele não é político. Jânio Quadros promete “varrer a sujeira do Brasil”. Fez da vassoura o seu símbolo de campanha. A ideia pegou, com ajuda da musiquinha “Varre, varre, Vassourinha. “ Eu tenho dúvidas sobre a sanidade mental dele.
Estamos a 15 dias da eleição e ainda me pergunto: em quem votar? No menos mau? Tem que ser assim ou isto é resultado de imperfeição da nossa pobre democracia ou de impureza dos nossos mecanismos políticos ou de desqualificação de nossos homens públicos? Talvez o misto de tudo isso! Nossos partidos políticos não têm ideologia, nem programa, nem representatividade; são agremiações dedicadas à defesa de interesses dos seus dirigentes, muitas vezes por meio de negociações impublicáveis. É o que diz a “voz do povo.”
Jânio Quadros foi eleito Presidente do Brasil. Mas, seu companheiro de chapa, candidato a Vice-Presidente (Milton Campos) perdeu para João Goulart, conhecido como Jango, que foi candidato pela chapa do Lott. Que bagunça! Mas, é a lei: o voto para Vice-Presidente é desvinculado do voto para Presidente, podendo serem eles de partidos diferentes! Eu acho que isto é ruim para a harmonia governativa.
O novo governo mal assumiu e eu já estou desapontado com medidas adotadas pelo Presidente Jânio Quadros: proibiu briga de galo, criminalizou o uso de lança-perfume, interditou o biquíni de praia. Só pode ser doido! Inventou governar por “bilhetinho”, dando ordens e orientações a seus ministros: Ëxcelência faça isto …. Excelência, no prazo de 10 dias quero …. Excelência decida sobre …. Definitivamente, é um excêntrico. Há quem atribua tais medidas esdrúxulas ao consumo excessivo de “whisky”. Será? Certo é que não é normal. Mas, uma coisa é verdade: ele trouxe melhorias para a administração pública.
Entendo que o Governador do Estado da Guanabara (antes Distrito Federal), Carlos Lacerda, é um dos mais ativos políticos brasileiros, dotado de grande poder de articulação, orador incendiário; o homem é terrível. Vem fazendo um governo operoso e íntegro. Peca por excesso de ambição pessoal e faz da militância política trampolim para conquistas personalistas. Foi “comunista perigoso” com a mesma naturalidade com que é, hoje, um “direitista requintado”. Neste exato momento, altas horas da noite de 24 para 25 de agosto de 1961, está fazendo na televisão uma enxurrada de acusações (sem comprovação) ao Presidente Jânio Quadros.
O Brasil está chocado: Jânio Quadros renunciou à Presidência da República neste 25 de agosto de 1961 – sete meses após ter tomado posse. Alegou que “Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração. “ Está difícil separar-se das fantasias a verdade. “É golpe do Jânio”, dizem uns. Outros atestam que os “militares estão chegando com seus tanques”. Alguns acusam: “O Congresso Nacional atropelou o rito legal e açodadamente leu a carta-renúncia e deu posse ao Deputado Ranieri Mazzilli, Presidente da Câmara dos Deputados, como Presidente da República. “ (o vice-presidente, João Goulart, está na China, em viagem oficial). No começo da noite, passei pela Cinelândia, no centro do Rio, para ver a agitação; estava fervendo de manifestantes – ninguém se entendia. Juntos, militantes sindicais, estudantis e de diversas matizes de esquerda vendiam versões hipotéticas e soluções milagrosas – meros castelos de areia. E a Polícia de cassetete à mão!
Os dias subsequentes têm sido intensos. Nas últimas horas cresceu muito a pressão contra o retorno do Vice-Presidente João Goulart ao Brasil e sua posse como Presidente. No dia 28, os Ministros militares fizeram chegar ao Congresso Nacional mensagem relativa à decisão tomada por eles, segundo a qual a posse de Jango como Presidente da República seria nociva aos interesses nacionais. E mais, se retornar ao Brasil, será preso. Articulações politico-militares se intensificaram, resultando na instauração do regime parlamentarista, no dia 2 de setembro. O Deputado Federal, mineiro, Tancredo Neves foi escolhido para a Chefia do Gabinete. Assim, Jango pode ser Presidente – concordaram os militares.
Eu tenho simpatia pelo regime parlamentarista. Mas, este parlamentarismo é fruto de um apressado conchavo político, com a finalidade exclusiva de diluir as restrições militares a Jango. É um arranjo artificial, sem fôlego. Tanto assim que irá a plebiscito para confirmação popular – será que o povo dirá “sim”?
A crise aguda foi serenada pelo parlamentarismo. O Primeiro Ministro Tancredo Neves é um homem muito hábil. Todavia, a artificialidade do regime gera instabilidade. Por sua vez, o Presidente João Goulart é o seu mais aguerrido opositor; sente-se usurpado e quer o presidencialismo de volta.
Dezembro de 1961 – Estou fazendo balanço da minha situação como servidor público. Antes do natal decidirei que rumo tomar. Gosto do que faço, mas considero os resultados da minha ação insatisfatórios, para um profissional responsável e consciente como eu pretendo ser. Dentre outras, tenho como alternativas para o futuro próximo: pedir demissão, propor minha transferência para Brasília, mudar de área na Administração Federal. Só não quero continuar sob risco de me tornar um funcionário acomodado e sem futuro. Quero um ano novo dinâmico e de bons resultados profissionais.
*Por José Teixeira. Executivo. Consultor
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Narrativa que prende a atenção e resume com maestrina a historia política da nossa combalidas República do início dos anos ’60.
Aguardo ansioso os próximos capítulos da vida funcional do nosso heró, mesclada com o contexto politico brasileiro.
Posso adivinhar que vem muita emoção por aí…