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DIÁRIO DE UM SERVIDOR REPUBLICANO

Descoberta Inesperada

O Dr. Frederico Albuquerque foi alto servidor do governo federal por quase três décadas, na segunda metade do século passado. Adquiriu larga experiência na “gestão da coisa pública”, conforme constava de seu curriculum do qual muito se orgulhava. A carreira dele foi feita na Esplanada dos Ministérios e adjacências, em Brasília, havendo migrado de Ministério a Ministério, sempre acompanhado de sucesso e elogios por seu desempenho exemplar. Colecionou honrarias, medalhas e prêmios. Fez muitos amigos e admiradores. Ocupou diversos cargos de relevo: Diretor de Departamento, Chefe de Assessoria, Secretário Geral, Diretor de Autarquias e de Empresas Estatais. Bacharel em direito, dominava assuntos jurídicos; também econômicos e sociais com profundidade. Falava de orçamento e finanças públicas como especialista. Discreto, calava-se diante de temas polêmicos. Pessoa de trato afável, convivia respeitosamente com todos. Seu estilo cerimonioso, de quem guarda prudente distância para evitar intimidades, amoldava-se a conversas descontraídas com servidores encarregados da execução de tarefas simples – a moça do cafezinho, o ascensorista, o pessoal da limpeza e tantos outros. Conciliador nato, era hábil inibidor de conflitos. Não gostava de ouvir elogios a ele e quando era impossível evitar que alguém o fizesse, costumava dizer que “isto é devido a minha incapacidade de desfazer amigos e não ter inimigo! “  Se alguém insistia em ressaltar suas virtudes, logo concluía: “é tudo mérito dos amigos carinhosos. “ Naquela sexta-feira 13, despediu-se da secretária, com votos de “feliz final de semana. “ Inesperadamente, faleceu na tarde do domingo, deixando esposa e dois filhos. A notícia provocou grande comoção, levando incontáveis pessoas a prestar a última homenagem àquele “lídimo servidor republicano”.

Mala a chave

A missa de sétimo dia, além de ato religioso, foi também um momento social intenso. A família do falecido recebeu comovidos cumprimentos e ouviu elogios incontidos ao Dr. Frederico – “um exemplo para todos nós. “ Amparada pelos dois filhos, Dona Carmen, a viúva, desmanchava-se em lágrimas sentidas. Durante os trinta primeiros dias, ela deixou intocado tudo o que tinha sido do marido, quando, então, deu início a mudanças na casa: deslocou móveis, transferiu-se para outro quarto, pintou ambientes com novas cores, distribuiu entre membros da família alguns pertences do marido, alterou rotinas; tudo isto para melhor superar o momento de dor. Mas, embatucou diante de uma mala metálica, de tamanho médio, que vivia trancada; só o falecido mexia nela – sempre à noite. Jamais havia tomado conhecimento do seu conteúdo. “Onde estará a chave dela? “- indagou-se Carmen. Encontrou-a na gaveta do bureau do escritório, retornando apressadamente ao “closet” do quarto do casal, coração acelerado. Confusa, sentou-se na cadeira ao lado da mala. Respirou fundo, pediu desculpas ao seu “querido marido” e lhe prometeu respeito a todos os pertences ali guardados; garantiu-lhe preservar sigilo de tudo. Foram minutos de “diálogo transcendental”, terminado com um gesto largo de abraço, como se Frederico estivesse ali para recebê-lo. Decidida, deu início ao reconhecimento do conteúdo encontrado. Juntas, ali estavam as escrituras da casa onde moravam, do apartamento de um quarto na Asa Sul, e de um flat na Asa Norte. Um molho de chaves, com duplicata da casa e dos outros imóveis, todas com etiquetas identificadoras. Passaporte, caneta  21 antiga, um relógio de algibeira, herança do pai, e outros objetos pessoais de pouco uso. Havia também três volumosos conjuntos de cadernos de espiral, atados com fita elástica grossa. Eles estavam numerados pela ordem do tempo. Todos tinham escrito, a mão, o título MEU DIÁRIO, embaixo do qual se lia: Pessoal e Sigiloso. O primeiro deles continha, na segunda página, uma “Nota aos Meus”, datada de 2 de janeiro de 1962, assinada por Frederico Albuquerque, em que expressa o desejo de guardar para ele próprio, exclusivamente, aqueles registros, esclarecendo que na sua falta, “caberá a minha esposa” decidir sobre o destino a ser dado aqueles registros. Passados 40 dias da morte do marido, Carmen ainda se emocionava muito ao se lembrar dele. Beijou os cadernos do Diário e desinteressada do que mais havia encontrado, os devolveu à mala, que fechou, como fazia Fred, e se retirou do ambiente.

A decisão de Carmen

Ato continuo, ela ligou para os dois filhos e contou a novidade. Pediu a ambos que fossem jantar com ela, para falarem sobre o Diário. Jorge, o menos sisudo, sempre buscava temas descontraídos, especialmente quando se referia ao saudoso pai. E assim fez durante o jantar, a começar pelo vinho que abriu, dizendo: “Hoje vamos beber um “bourgogne”, o preferido do Dr. Frederico. É uma justa homenagem que prestamos ao velho, que foi embora, antes da hora. “ Seu irmão Alberto riu amarelo. Dona Carmen, fez carinho na mão dele, postada sobre a mesa. Fizeram um brinde e degustaram o vinho, com elogios ao bom gosto do ausente. Alberto, perguntou à mãe como ela se sentia, no que foi interrompido pelo irmão, que a convidou para ir a uma estância de águas quentes, em Goiás, no final de semana. Enquanto a mãe titubeava, sem saber se aceitava ou não o convite, Jorge chutava a canela do irmão, por baixo da mesa. Assuntos se sucediam aleatoriamente e Jorge terminou fazendo os dois rirem.  Finalmente, Dona Carmen falou sobre a “mala a chave” e   o Diário. Destacou a Nota aos Meus, “que somos nós três, incluídas noras e netos”. Ali estavam para decidir sobre o que fazer com as “memórias do pai”. Sem divergência, os filhos disseram que a mãe deveria decidir autonomamente. Ela resistiu; queria ouvir a opinião deles. Finalmente, anunciou: “Serei a primeira a ler o Diário”; depois, Jorge e, por último, Alberto; na mesma ordem, as respectivas esposas. “Quando todos tiverem lido, faremos novo encontro para resolvermos que destino dar àquela preciosidade. “ Ordem dada …

Ordem cumprida!

O amanhecer do dia 20 de setembro (aniversário de Fred) foi particularmente doloroso para a viúva, pelas lembranças insistentes do falecido marido. Ainda era cedo para encarar com realismo a pesada perda. Quantas lembranças!  À noite, houve jantar em família. Jorge, bom conhecedor de vinho, exibiu uma bela garrafa de Cheval Blanc – 1968, da pequena adega do pai, cantando loas ao “magnífico “bordeaux”, especial para momentos raros, como este. “ O tinir de taças cedeu lugar ao coro de “Viva o Fred! “, puxado por Dona Carmen. Entre a sobremesa e o cafezinho, ela lançou pergunta a todos: “Vocês leram, então, o Diário? “ Em sequência ao sim coletivo lembrou que ali estavam para decidir a destinação das “memórias fredianas”, como Jorge classificou o achado. Sem divergências relevantes, o consenso surgiu rapidamente. A nora Sônia, esposa de Alberto, deu contribuições lúcidas a respeito da questão. No entender dela a maioria dos fatos comentados não despertaria o interesse público; apenas o de “uma pequena comunidade da burocracia federal”. Outros, todavia, são reveladores da estrutura decisória do governo, com repercussão no seio da sociedade, de forma impactante e, muitas vezes, perene; estes devem ser oferecidos ao conhecimento público. Um terceiro grupo de registros, ainda, mostra episódios da relação da administração federal com grupos específicos da sociedade nacional e suas pressões em busca de decisões aderentes a seus objetivos. Sônia encantou a todos com sua dissertação e citação de exemplos. A sogta suspirou ao ouvi-la dizer que “Fred foi um homem público de realce; consciente de seu papel e de suas responsabilidades. Certamente, fez Diário pensando em publicar suas memórias, depois de se aposentar. Democrata e de boa cepa, deve ter sofrido muito por onde passou. “ Jorge lembrou a vontade do pai, quando delegou a sua mãe decidir sobre a destinação do Diário e colocou-se na posição de mero auxiliar da decisão, no que foi seguido por todos. Dona Carmen deu sequência sem comentários: “Sônia, preciso da sua ajuda. Vamos selecionar os registros que podem e devem ser divulgados. Você faz isto para nós? Juntas analisaremos o resultado. Decidirei o que fazer, em seguida. “

Seleção feita

A nora jornalista dedicou-se com esmerado zelo à seleção de textos cuja divulgação seria de mérito, segundo os critérios estabelecidos: fatos relevantes, comprováveis, que preservem a honra alheia e contribuam para o aprimoramento do trato da coisa pública, com clara repulsa a tentativas de desvio de conduta; que se constituam em defesa dos princípios democráticos e republicanos. Passadas três semanas, ela propôs a Dona Carmen um encontro em que faria a apresentação de suas conclusões. Aplicaram horas em discussões sobre os registros selecionados, discordaram aqui e ali, descartaram alguns, incluíram outros e finalmente: “Estes devem ser divulgados, por interesse público. “ Não era uma lista longa. Sônia ponderou, ainda, que o Diário da Corte costumava prestigiar conteúdos da natureza do “nosso.  “Se autorizada pela Senhora, Dona Carmen, posso falar com o Editor-Chefe, de quem sou amiga” – acrescentou, sendo prontamente credenciada a tomar esta e qualquer outra providência para o sucesso desejado. Com uma cópia “xerox” dos originais manuscritos do Diário, Sônia foi apresentar sua ideia ao diretor do mais prestigiado jornal da capital do pais.  

Decisão acolhedora

Etelvino Linhares, o Editor-Chefe do Diário da Corte, ao saber de quem eram os “fragmentos de memória”, reagiu de forma positiva: “Dr. Frederico Albuquerque sempre mereceu nosso respeito; as portas do jornal continuam abertas para ele. “ Fez duas exigências. A primeira, receber cópia da “Nota aos Meus”, onde está a autorização para Dona Carmen decidir a destinação dos registros. A cópia do material destinada a publicação, deverá acompanhar carta de encaminhamento ao jornal. Dona Carmen desejou que tudo fosse feito na presença da família, em sua própria residência, onde seria servido um coquetel em homenagem ao jornalista do Diário da Corte. Este foi recebido com alegria e descontração, num final de tarde. A anfitriã se deixou fotografar entregando as cópias solicitadas, declarando que a decisão tomada por ela “tem o endosso da família. “ Etelvino levantou-se, com taça à mão, e pediu um brinde de todos “em saudação ao amigo, Dr. Frederico Albuquerque, a quem o pais muito deve”. Revelou, para alegria de todos, que já estava planejada a publicação do “Diário de um Servidor Republicano”, em fragmentos. Anunciou também, que a edição “deste domingo”, falará do Diário do Fred; e que, talvez quinzenalmente, aparecerão os fragmentos selecionados para divulgação.  O coquetel terminou em clima de confraternização, com intervenção jocosa e provocativa do filho Jorge (sempre ele!): “Vocês ouviram o Velho batendo palmas para nós, lá de cima? E deu bronca na Velha por não lhe servir um trago!

Continua…

José Teixeira

Executivo. Consultor

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1 Comment

  • Para variar, texto delicioso e envolvente do amigo Teixeira.
    Ansioso pela continuação.

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