Na borda da taça
Um dos elementos que torna o profissional diferenciado em relação aos demais é a constância, o treino, a especialização. Em tese, é isso o que fazem as crianças para aprender a andar, se expressar em gestos e palavras, alcançar independência. Não é diferente para os cegos que aprendem a “enxergar”, como
no título do ótimo documentário “Além da Luz”, empunhando uma bengala ou interagindo com um cão-guia, desenvolvendo a audição e especial noção de espaço.
Também para surdos, hábeis na capacidade de entender uma linguagem específica, Libras, ou leitura labial com maestria e a destreza de captar vibrações, como se seus corpos fossem, latu sensu, equiparáveis a sismógrafos humanos. No caso de PcD com afetação motora, muitas vezes a sensação é de que estão caminhando por um piso escorregadio ou um fio suspenso. E essa, supostamente, é a sensação que se tem na tentativa da primeira conquista de alguns adolescentes. A ideia de que aquela pessoa tão bela, objeto de pueris desejos, corresponda aos apelos do coração projeta a realização de sonhos maravilhosos. No entanto, a perspectiva contrária, de uma rejeição, dispõe a insegurança e o medo pelo caminho dos impúberes apaixonados.
E nessa fase ainda de descobertas, de mãos frias, coração aos pulos, olhar perdido no encanto da moça jovem e sozinha que degusta um vinho tinto, o moço, também jovem, lhe abre um sorriso enquanto avalia as estratégias para uma abordagem romântica. É fim de tarde e na maioria das mesas as conversas
ainda estão em tom confidencial, como sói ocorrer enquanto os convivas estão sóbrios.
Como a bela reagiria quando ele se encaminhar até ela com seus passos instáveis, seu andar hesitante? E o que pensaria de sua aparência em roupas simples encimando as feias botas ortopédicas, braços de estivador e sobrancelhas espessas que quase encobrem os olhos verde-escuros? Teria tempo de dizer alguma coisa com aquela voz muito grave e assim expressar a ela sua admiração?
As questões parecem ser comuns a todos, com a pequena diferença das evidentes sequelas.
Talvez uma bebida emprestasse a coragem momentânea, necessária para “quebrar o gelo”, mas ser abstêmio inviabiliza a opção. Então resta apropriar-se do ânimo dos inconsequentes, vestir-se do melhor sorriso, valer-se dos ensinamentos do estrategista chinês Sun Tzu, e tentar usar mesmo a adversidade em favor de um propósito. Apenas alguns poucos passos. Se nem tentasse, nuca saberia a resposta.
- Olá! Posso me sentar um pouquinho?
- Olá.
- Meu nome é Sérgio e eu queria falar com você, posso?
- Tudo bem.
- Vi que você está tomando um vinho de forma tão elegante nesse lugar em que quase todos tomam cerveja…
- Você bebe o quê?
- Só suco.
- Então gostou de me ver tomar vinho? E só por isso veio até aqui?
- Na verdade não foi assim tão fácil. O vermelho de seu batom me deixou bem inseguro, como se precisasse me equilibrar na borda dessa taça. Piegas, mas funcionou. No bar tocava “Woman” com John Lennon.
Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.
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Site: Mário S. R. Ananias – Sobre Viver com Pólio (mariosrananias.com.br)
7 Comments
Que delícia de leitura. Faz reviver momentos que só os amantes saberão. A importância de perceber que independente de ser ou não PcD, quando se trata de sentimentos, coração acelerado…
É tudo igual. É claro que a insegurança de uma não aceitação fica ainda maior.
O mais legal é pensar que se não tentar, se não enfrentar, se não ousar ir em busca do que se deseja, nunca vai alcançar. É preciso acreditar!
Parabéns Mário Sérgio Rodrigues Ananias. Seus textos além de trazer reflexões importantes, são encantadores!
Obrigado.
Muito bom o seu texto.
Viajei para minha adolescência e deliciei com as lembranças….
muito bom
Obrigado.
Você tem uma sensibilidade especial e traz consigo uma bagagem que sobressai e contagia. Muito gostoso ler seus textos e sentir seu carisma… conviver e ter conhecido você é tudo isso e muito mais!!!
Você não tem apenas o domínio das palavras, mas vivência muito bem o que passou e soube aprender com as dificuldades…
Você põe em prática…
Mais um texto que prende a nossa atenção. Parabéns meu querido.