O que é pior?
“Ninguém viveu na vida o que eu vivi; ninguém sofreu na vida o que eu sofri!…” Esse trecho da música Cabelos Brancos (1949) de Herivelto Martins e Marino Pinto, lançada pelo conjunto Quatro Ases e um Coringa e eternizada na potente voz de Nelson Gonçalves, remete o ouvinte a avaliar a extensão da dor do intérprete. Seria, a dele, a maior de todas as dores entre tantas dos sobreviventes em amores desfeitos. Mesmo não sendo expert em dores ou psicologia do abandono, acredito que, provavelmente, cada um que cante essa canção, consoante experiência própria, o fará com verdade. A dor que afeta,
imagino, é sempre maior que qualquer outra. Por isso me espanto quando alguém faz questionamentos sobre qual a deficiência é pior para uma pessoa. Assim como qualquer pessoa sem deficiência, as habilidades de cada um são ajustadas à sua capacidade de performance; aos seus conhecimentos, talentos, aptidões e vontades. E o evento recente das Paraolimpíadas demonstrou isso com clareza. As deficiências naturalmente podem implicar em restrições em níveis característicos para atividades distintas. Cada uma com suas especificidades.
Recentemente, em um fim de tarde especialmente abrasador em Brasília, conversávamos sobre a catástrofe para a qual se encaminham os conflitos injustificáveis, iniciados com a invasão da Ucrânia pela Rússia e pelo ataque com morte e sequestro de israelenses executados por palestinos que redundou numa resposta gigante da nação judia. Sem considerar aqui o mérito, pois há opiniões divergentes demais, de todos os matizes, cumpre, por outro lado, rememorar a grande demonstração de conhecimento por um dos presentes, um amigo tetraplégico. Para além de seu vasto conhecimento geopolítico e de sua capacidade de síntese acerca do tema, importa observar que era cativante ouvilo e enveredar, na imaginação, pelos campos bélicos, diplomáticos e políticos. Isso, sem nos permitir desviar de todas as questões humanitárias envolvidas, das perdas humanas e da fábrica de PcD que sorrateira, se implanta nesses conflitos. E não se restringe unicamente aos danos diretos pela brutalidade dos combates, mas também pelas dificuldades logísticas geradas para cuidar dos feridos ou para permitir, por exemplo, a imunização contra doenças consideradas erradicadas ou outras que precisam da prevenção para preservar a vida. A conversa, mesmo tratando de tema tão contundente, fluía leve.
Algumas pessoas são capazes de se equilibrar em um tênue fio e são felizes por isso. Outras podem memorizar nomes, rostos, números; e também são felizes. E outras ainda, mesmo incapazes de levar o próprio alimento à boca, conhecem profundamente a alma humana; e é feliz por compartilhar o seu saber.
Na questão esportiva, há níveis que devem ser respeitados para que haja a máxima equidade possível entre os contendores. Afinal, não haveria justiça se competidores com capacidades muito desiguais se enfrentassem. Assim como nos esportes marciais, os atletas são distinguidos por peso.
Dessa forma, depreendo que a dor que se sente, naquele justo momento, é a pior que existe. Também a deficiência própria é sempre ruim, ainda quem a tenha possa ser a melhor pessoa.
Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.
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2 Comments
tomo a liberdade de ir além em relação a mais esse excelente texto. ” não haveria justiça se competidores com capacidades muito desiguais se enfrentassem”… essa afirmação é perfeita. Sinceramente, considero um absurdo colocarem pessoas que se consideram mulher para enfrentar mulheres biológicas. A atleta Payton Mcnabb teve paralisia facial em razão de ter sido atingida por bola de voley em campeonatos no qual esse absurdo é tolerado.
Obrigado por comentar.
E sempre polêmico levantar questões dessa natureza, especialmente num tempo em que se procura desconstruir a história humana de forma ideológica. Por outro lado, considero importante aprender com as experiências.