Você tem carteirinha?

Quando ainda criança, na minha montanhosa cidade, ouvimos uma estória curiosa sobre um senhor muito forte, que organizava blocos de carnaval todo ano, no nosso bairro. Contava-se que ele, se divertindo numa zona afastada, conhecida como Peroba, região boêmia da cidade, teria sido interpelado por três policiais. A abordagem acirrou ânimos e partiram, os quatro, para as vias de fato. Interessante é que, naquela necessidade juvenil de demonstrar virilidade, num tempo em que os filmes faroeste, com mocinhos cheios de testosterona, estavam no auge, quem o conhecia dizia, com orgulho, que ele teria posto os soldados para correr. Quem replicava a narrativa, eventualmente variava o número de
derrotados na contenda. Um dos que trouxeram o relato, indicou que foram cinco. Alguém naquela plateia de esquina, com ar abobalhado; olhar tipo veneziana, como o personagem Garfield, das HQ, como se economizasse parte da órbita, questionou, com voz anasalada:

E se ‘viesse’ dez?

A pergunta sem-pé-nem-cabeça parecia não se encerrar nas palavras, uma vez que a boca se manteve aberta como a escorrer outras dúvidas inaudíveis.

Às vezes somos expostos a situações tão sem sentido que, em algumas delas, fica difícil alcançar o nível de insensatez ou irracionalidade da interpelação.

Numa época complexa de minha vida, convalescendo da cirurgia de reimplante da mão, amputada por uma serra circular, vivi um desses cenários.

Os bancos fechavam às dezesseis e, quem não fosse amigo do gerente, não seria admitido na agência após esse horário. Saques, depósitos ou outras transações teriam que esperar até dez da manhã do próximo dia útil. (Ah! Que coisa maravilhosa a tecnologia que nos livrou de toda essa dependência!).

Três e cinquenta e eu estava do outro lado da Pedro II esperando alívio do trânsito para atravessar. Não demorou. Cruzei as pistas com meu andar bamboleante que, se houvesse música, talvez parecesse tentativa de dançar um breaking. O guarda do banco, empertigado à porta, esperava os últimos minutos
e a ordem para encerrar entrada. Me olhava chegar num misto de curiosidade e desafio. Eu suava bastante pelo esforço, mas tranquilo por chegar em tempo.

Quando entrei pela porta giratória, com sensor, ela apitou e travou. Como de hábito, eu sorri para o guarda, levantei um pouco a calça para que ele visse o aparelho ortopédico metálico e liberasse a porta. Ele se aproximou do vidro e, falando tolamente pela greta entre as placas perguntou:

O senhor tem carteirinha?

Do que ele estava falando? Eu não sabia o que responder. Que carteirinha, meu Deus? Será que agora tinha que ter ‘carteirinha’ para entrar num banco?

Depois de muito mal estar que quase o fez sacar sua arma, o gerente entrou na conversa e ficamos sabendo que o guarda se referia à carteira de passe nos ônibus. Minha deficiência, claramente visível, inclusive por mostrar o tutor longo que uso, para ele só seria corroborada pela tal carteirinha.

Porque será que se dá tão pouca atenção ao contato com o cliente? À linha de frente das organizações? Temos mesmo muito o que aprender.

Mário Sérgio

Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.

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Site: Mário S. R. Ananias – Sobre Viver com Pólio (mariosrananias.com.br)

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8 Comments

  • Algumas pessoas estão tão acostumadas com as burocracias impostas que não conseguem ver o óbvio.

    A nossa sociedade não está preparada para lidar com pessoas, há muito o que se aprender.

    Mário obrigado por compartilhar histórias maravilhosas e ajudar no processo de aprendizagem a sermos pessoas melhores.

    grande abraço

  • Você, sempre tirando o melhor de sua versão, quase dançando Break! Me divirto lendo seus post!
    Parabéns, Mario!

  • Infelizmente hoje temos um mundo muito impessoal e muito “virtual “

  • Estou cancelada só por pensar o que acho de vigilantes.

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