Da “euforia” ao “blackout”: O que acontece no organismo quando bebemos álcool
Efeitos a longo prazo podem incluir demência alcoólica, Alzheimer e cirrose; quem bebe “socialmente” também corre riscos
O psiquiatra David Nutt, professor da Imperial College London, se dedica ao estudo do impacto das drogas no cérebro. Para ele, as pessoas “associam o cheiro e o sabor da sua bebida favorita aos efeitos no cérebro e ao prazer que está por vir”.
“O álcool é a melhor droga de socialização que conhecemos”, afirma o psiquiatra.
Mas esse bem-estar, associado a um estado de “euforia” decorrente da ingestão das primeiras bebidas alcoólicas, rapidamente pode transformar-se num estado de consciência alterado de tal forma que pode levar a perdas de memória – o chamado “blackout” – e, em casos extremos, ao coma e à morte.
Tudo isto porque o álcool, uma vez ingerido, chega ao cérebro em poucos minutos através da corrente sanguínea, e ali estimula o “Gaba” (Ácido gama-aminobutírico), o nosso neurotransmissor inibitório, que, segundo David Nutt, “para a maioria das pessoas, fica um pouco reduzido em situações sociais, tornando-as mais ansiosas e tensas”.
O neurologista João Massano, coordenador da Unidade de Neurocognição e Demências do Hospital CUF, em Portugal, explica à CNN que é justamente para aliviar a tensão que as pessoas costumam procurar no álcool uma forma rápida de se desinibirem.
“Muitas pessoas têm a noção de que a fase da euforia favorece as suas interações sociais, ajudando a ultrapassar algum tipo de introversão, vergonha ou ansiedade associadas ao contato com outras pessoas, e, por isso, consomem álcool na tentativa de alcançarem este estado de bem-estar relativo”, observa.
“No entanto, muitas destas tentativas acabam mal, porque o consumo acaba por ultrapassar o desejável, conduzindo às fases seguintes”, completa o neurologista.
Da confiança à confusão: o que acontece após o primeiro gole
Ao estimular o Gaba, o álcool “atua como se fosse quase um fármaco” no nosso organismo, compara a psiquiatra Ana Margarida Franco, que trabalha no departamento das adições do Hospital Monsanto, na Amadora.
De acordo com a especialista, o efeito do álcool no cérebro é muito semelhante ao das benzodiazepinas, medicamentos habitualmente receitados para aliviar o stress e a ansiedade.
Por isso, é natural que, após as primeiras bebidas, a pessoa fique “mais desinibida e mais sociável”, indica a psiquiatra. Esta é a fase da “euforia”, como classifica o neurologista João Massano, associando-a uma “sensação de relaxamento e confiança”.
À medida que o consumo de álcool aumenta, vai-se passando para uma outra fase do consumo de álcool, que se traduz num estado de “confusão, com descoordenação de movimentos e, por vezes, perda de consciência”. E, “doses muito altas, podemos mesmo ter morte associada, depressão respiratória ou coma”, acrescenta a psiquiatra.
É nesta última fase, da perda de consciência, que podem ocorrer os chamados “blackouts” – uma perda de memória, total ou parcial, que ocorre “quando a quantidade de álcool é suficiente para afetar o funcionamento dos circuitos de memória”, explica João Massano.
Ou seja, apesar de se ter mantido consciente durante o período em que esteve sob o efeito de álcool, posteriormente não tem memória do que fez nesse mesmo período.
Estas perdas de memória “tendem a acontecer sobretudo quando a ingestão de álcool é feita num curto de espaço de tempo, em que a concentração de álcool no sangue aumenta rapidamente”, acrescenta o neurologista, destacando que “as mulheres são, por motivos fisiológicos, mais propensas à concentração mais acelerada de álcool no sangue e aos efeitos decorrentes da intoxicação”.
A psiquiatra Ana Margarida Franco associa estes blackouts a um “descuido na alimentação” que por vezes ocorre num contexto social e que leva a “défices vitamínicos”, nomeadamente da tiamina (vitamina B1), fundamental para o funcionamento normal dos neurónios.
Demência alcoólica, Alzheimer e cirrose: os efeitos do álcool a longo prazo
No caso do consumo prolongado de álcool em excesso, este défice vitamínico pode resultar numa forma de demência alcoólica específica, que surge ao longo do tempo e que afeta a memória, a aprendizagem e a função motora.
Esta patologia tem duas fases: na primeira, designada encefalopatia de Wernicke, “as pessoas apresentam-se muito confusas e com alterações da coordenação motora”, explica o neurologista João Massano.
Nesta primeira fase, “a situação é reversível” se a pessoa deixar de consumir álcool e for “tratada com tiamina em doses elevadas”.
Pelo contrário, continua o neurologista, “se o consumo de álcool persistir, as pessoas acabam por desenvolver síndrome de Korsakoff, que se caracteriza por uma grave incapacidade de recordar fatos ou eventos muito recentes”.
“As pessoas tendem a preencher as lacunas de memória com fatos involuntariamente inventados, podem ter total incapacidade de planear ou organizar o seu dia a dia e até desenvolver alucinações”, descreve.
Além disso, o consumo de álcool em excesso também aumenta o risco de Acidente Vascular Cerebral e da doença de Alzheimer, “por razões ainda não muito bem esclarecidas”, diz o especialista.
A ingestão prolongada de bebidas alcoólicas, ao longo de décadas, não afeta só o cérebro – na verdade, tem impactos em todo o nosso organismo, desde logo no fígado, que, entre outras funções, ajuda na metabolização de toxinas do tubo digestivo.
O consumo prolongado de álcool pode provocar uma cirrose hepática, isto é, uma inflamação crónica no fígado que, com o tempo, pode criar cicatrizes no tecido fibroso, comprometendo a estrutura e as funções do respetivo órgão e, consequentemente, afetando o cérebro, como explica à CNN o gastroenterologista Armando Peixoto.
De acordo com Peixoto, a doença hepática relacionada com o álcool é “muito silenciosa” e, “na maior parte das vezes, quando começam a surgir complicações, a doença já está num estágio muito avançado e a probabilidade de reversão é muito reduzida.
“Muitas vezes, a única forma de tratamento, além da privação do álcool, é mesmo o transplante hepático, o que raramente acontece, porque a maior parte dos doentes não tem capacidade para resistir a um transplante hepático ou, se tiver, muitas vezes não há fígados suficientes para transplantar”, aponta.
Neste cenário, a taxa de mortalidade de uma cirrose hepática descompensada “ronda os 50% em dois anos” da manifestação dos primeiros sintomas.
O consumo prolongado de álcool em excesso pode provocar também a chamada ascite, que consiste numa acumulação anormal de líquido no abdómen e que ocorre precisamente como consequência da obstrução dos vasos sanguíneos.
“É um extravasamento da água do sistema vascular intra-abdominal para o espaço livre entre os órgãos”, sintetiza o gastroenterologista, acrescentando que esta patologia “tem um prognóstico muito reservado”.
“A taxa de mortalidade de um indivíduo que desenvolve uma ascite é elevadíssima. Passados dois anos [do aparecimento das complicações], cerca de metade dos doentes faleceu”, indica.
Uma outra complicação associada ao consumo prolongado do álcool em excesso está relacionada com o sistema cardíaco, como explica à CNN o médico João Gorjão Clara, especialista em medicina interna.
“A ingestão crónica de álcool em excesso leva a uma agressão no coração que se traduz na dilatação do coração, isto é, o coração aumenta de volume e torna-se muito menos eficaz como bomba contrátil que é, levando a arritmias cardíacas, na qual a mais frequente é a fibrilação auricular”, explica o também professor catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa.
Beber “socialmente” aos fins de semana também tem “efeitos adversos”
Quem costuma usar o argumento de que só bebe álcool “socialmente” aos fins de semana, saiba que nem assim escapa a estas complicações. De acordo com o gastroenterologista Armando Peixoto, o “binge drinking, isto é, o consumo de álcool em excesso em situações pontuais, também está associado ao desenvolvimento de doenças do tubo digestivo, em particular da doença hepática”.
“Não é preciso beber álcool todos os dias para desenvolver uma doença relacionada com o álcool, em particular a doença hepática, que é a que nos preocupa mais”, sublinha o especialista.
A psiquiatra Ana Margarida Franco partilha a mesma opinião, reforçando que “consumir álcool todos os fins de semana é praticamente um consumo em ‘binge’ e não é isento de efeitos adversos”.
*Com informações de CNN