E teve momentos em que ser feliz já foi ruim. Vem que eu te explico!
Houve um tempo na história da humanidade em que era malvisto demonstrar alegria. Aliás, a busca pela felicidade como conhecemos hoje é algo relativamente novo na nossa história.
Essa é uma das observações do historiador Peter N. Stearns, professor emérito da Universidade George Mason (EUA), especializado em história comparativa social e história das emoções.
Ele é autor de História da Felicidade, livro lançado em 2022 no Brasil pela editora Contexto.
Em conversa com a BBC News Brasil, Stearns discutiu alguns destaques da história da relação humana com a felicidade e de quais lições ela traz para os tempos modernos.
A busca pela felicidade
Até o início do século 18, em lugares como Reino Unido e nas suas colônias na América do Norte, os historiadores perceberam que as pessoas tinham orgulho de serem um pouco melancólicas.
Isso tinha a ver, em parte, com a lógica protestante, de ter consciência dos seus pecados e de se manter humilde perante os olhos de Deus.
Peter Stearns cita nas suas pesquisas o diário escrito por um chefe de família da época, que defendia que Deus, entre aspas, “não permitia alegria nem prazer, mas sim uma espécie de conduta melancólica e austera”.
Isso não quer dizer que as pessoas fossem infelizes — simplesmente não temos como julgar isso de modo imparcial, a partir dos padrões atuais. Até porque a felicidade, obviamente, é algo bastante subjetivo.
O que significa é que havia entre as pessoas da época a percepção de que era necessário se desculpar por momentos de felicidade, por considerá-los uma afronta a Deus, segundo Stearns.
Mas isso mudou radicalmente no século 18, a ponto de, na redação da Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1776, a busca pela felicidade ter sido considerada um direito humano. A Constituição da França de 1793 também explicitou a ideia de que, entre aspas, “o objetivo da sociedade é a felicidade comum”.
Novas funções para os dentistas
“A nova ideia era que as pessoas não apenas deveriam ser felizes, mas tinham a responsabilidade de parecer felizes, produzindo algo como um novo imperativo de alegria”, diz Stearns em seu livro.
“O resultado aparecia tanto em conselhos por escrito quanto, ainda mais impressionante, em uma nova disposição de sorrir amplamente e de esperar sorrisos em troca. As boas maneiras começaram a ser redefinidas no sentido de enfatizar o positivo.”
Era o fim, segundo o historiador, “do autocontrole taciturno e do sorriso contido, substituído por maior espontaneidade.”
“Os romances — um gênero literário novo por si só — começaram a descrever as mulheres com sorrisos ‘encantadores’ ou ‘doces’, um claro sinal de novidade”, ele escreve.
“Em meados do século 18, surgiram novos tipos de dentistas em áreas urbanas de ambos os lados do Atlântico, ávidos por cuidar dos dentes em vez de arrancá-los. Uma série de produtos inovadores, incluindo palitos e escovas de dente, foi introduzida para preservar os sorrisos, e foram projetados auxílios artificiais, como o batom, para destacar a brancura dos dentes. O ato de sorrir demonstrava que a pessoa estava acompanhando os mais recentes produtos de consumo, além de exibir o tipo certo de emoção.”
O mistério que envolve essa mudança
Mas o que levou a uma mudança tão grande de perspectiva, causando a exaltação da felicidade e do sorriso? Existem explicações, mas também mistério, segundo Peter Stearns.
“Sabemos parte da resposta. Houve, obviamente, uma enorme mudança no clima intelectual nas sociedades ocidentais, associada ao Iluminismo”, diz ele à reportagem.
“Os intelectuais se tornaram mais otimistas. Eles ficaram mais focados neste mundo, em vez de em uma aspiração tão religiosa. Então a mudança no contexto cultural estava intimamente ligada à ascensão de um interesse maior em uma expectativa de felicidade.”
O aumento no conforto físico e na prosperidade das classes sociais mais altas, bem como períodos de trégua de epidemias e pragas, provavelmente também despertaram uma sensação maior de otimismo.
“Mas, francamente, há um pouco de mistério nisso. (…) Essa foi uma grande mudança cultural, e não acho que está totalmente claro por que ela aconteceu. Então é uma boa pergunta”, diz ele.
Obsessão com a felicidade?
Ao mesmo tempo, a busca pela felicidade se entrincheirou de tal modo nas sociedades ocidentais que, na visão de Stearns, criou uma obsessão e uma dificuldade em lidar com a tristeza.
“Certamente há um aspecto do interesse moderno na felicidade que provavelmente nos tornou intolerante à tristeza. Há alguns estudos, por exemplo, (mostrando que) não lidamos bem com crianças que estão tristes , porque queremos que as crianças sejam felizes. Então eu acho que, francamente, há um problema nisso”, diz o historiador.
“A maioria dos estudos sobre felicidade, do ponto de vista psicológico, argumenta que a felicidade precisa ser entendida como algo que, com alguma frequência, (vai ser intercalado) de coisas ruins, de tristeza. Então uma definição bem-sucedida de felicidade tem de permitir espaço para um pouco de pesar e tristeza. Mas acho que nossas culturas não lidam bem com isso. Somos impacientes com o luto.”
Felicidade e amor romântico
Padrões semelhantes se observam no elo entre a felicidade e o amor romântico.
À medida que a felicidade virou um objetivo social, as manifestações culturais – de romances escritos a canções e, mais adiante, filmes — passaram a exaltar o amor romântico, baseado no casamento e nos relacionamentos, como um caminho para ser feliz.
Do mesmo modo, porém, surgiram expectativas irreais a respeito disso, na visão de Stearns.
“Na Inglaterra do século 19, por exemplo, começou a surgir uma enorme pressão sobre escritores de ficção para que escrevessem finais felizes”, afirma ele.
“Por que queremos finais felizes no que lemos? Acho que é provavelmente verdade que ficamos insatisfeitos com histórias que não tenham final feliz. Não acho que isso seja totalmente saudável. Então tentar encontrar um equilíbrio entre expectativas e realidade é outra parte complexa desse tipo de análise.”
Nômades eram mais felizes?
Um ponto que tem despertado discussões entre historiadores é que os seres humanos podem ter perdido felicidade durante uma fase crucial da sua evolução: quando deixaram de ser caçadores-coletores nômades e começaram a criar sociedades sedentárias e agrícolas.
Ou seja, bem quando os humanos começaram a ganhar uma vida de mais previsibilidade e conforto.
É claro que não temos como perguntar a um caçador-coletor daquela época se ele era mais feliz do que somos hoje, mas os historiadores citam alguns pontos objetivos dessa transição do nomadismo ao sedentarismo.
Ao deixar a caça e a coleta, muita gente passou a ter uma alimentação menos variada. As jornadas de trabalho ficaram mais longas. Vivendo em sociedades, as pessoas ficaram mais suscetíveis a epidemias e a guerras. A desigualdade entre diferentes classes sociais começou a ganhar forma.
Para Peter Stearns, uma das questões principais a serem discutidas no contexto atual é o espírito de coletividade dos caçadores-coletores.
“Eles tinham uma grande quantidade de solidariedade grupal”, diz Stearns à BBC News Brasil.
“O que não quer dizer que não havia tensões, mas eles realmente dependiam uns dos outros. E acho que há muitos indicativos de que estruturas comunitárias melhoram a felicidade. E um dos desafios da felicidade hoje é que, para muita gente, estruturas comunitárias estão enfraquecidas”, aponta Stearns.
“Em contrapartida, não podemos voltar a esse nível. Eles (caçadores-coletores) não tinham os nossos confortos, nem os mesmos níveis de saúde que temos. Não há por que fingir que conseguiríamos voltar (no tempo). Então precisamos encontrar nosso próprio equilíbrio que funcione em um contexto moderno”.
Diferenças culturais da felicidade
E existe uma definição objetiva de felicidade?
Peter Stearns descreve-a no livro como uma espécie de reforço emocional para ações que trazem bem-estar. E com efeitos físicos e sociais também: a felicidade ajuda a baixar a pressão sanguínea e, de modo geral, ajuda as pessoas a se relacionarem melhor entre si.
Tanto que sorrir, no contexto moderno, é uma forma de fazer contato com pessoas desconhecidas.
A filosofia também deu muitas contribuições para entendermos a felicidade. Alguns exemplos: a ideia mais imediatista, de simplesmente aumentar o prazer e evitar sofrimento, é chamada de felicidade hedônica.
Já a felicidade eudaimônica é a que vem de relacionamentos pessoais positivos ou do orgulho e sensação de dever cumprido depois de um trabalho importante, por exemplo. Muitos psicólogos acabam vendo a felicidade como uma combinação dessas duas visões.
Mas as formas como isso se manifesta mudam a cada cultura, e a cada tempo.
Peter Stearns considera fascinante como essa visão é bastante diferente nos países orientais e na América Latina, por exemplo.
“Os russos não parecem ter expectativa de felicidade da mesma forma que os ocidentais. (…) Os japoneses não se saem muito bem em rankings internacionais de felicidade, considerando o quanto eles são prósperos e saudáveis. Mas isso reflete uma cultura diferente. A forma como pensamos na felicidade no Ocidente tende a ser altamente individualista”, explica o historiador à BBC News Brasil.
“Os japoneses têm um senso maior da importância da coesão comunitária. Então é difícil dizer: será que os japoneses são menos felizes que os ocidentais? Ou eles simplesmente veem a vida de um jeito um pouco diferente? Provavelmente um pouco de ambos. (…) A situação da América Latina é fascinante porque os latino-americanos costumam se sair muito bem em (rankings de) felicidade em comparação com seus níveis gerais de economia e saúde. Então parece haver algo na cultura latino-americana que desencadeia uma expectativa bastante alta de felicidade e um nível alto de realização. E as variações culturais são fascinantes e não correspondem exatamente ao nível de desempenho econômico.”
Ou seja, é bom relativizar as conclusões dos rankings globais de felicidade. Mas mesmo assim eles trazem lições interessantes, prossegue o historiador.
“Há atributos óbvios das sociedades que costumam ser listadas como as mais felizes: elas têm níveis relativamente altos de desenvolvimento econômico. Têm uma rede social bem desenvolvida. Então acho que há algo (a ser aprendido) nesses estudos”, ele diz. “Obviamente, há também debates. O caso do Butão, por exemplo, é amplamente discutido. O país não pontua muito nesses rankings internacionais, mas eles (autoridades do Butão) argumentam que têm uma abordagem diferente, mais religiosa e holística (à felicidade). E sob esses padrões, os líderes locais alegam estar indo bem.”
‘Aspirações modestas à felicidade’
Toda essa discussão reforça a ideia de que entender a história da felicidade pode trazer lições importantes para como nos enxergamos no mundo.
“Muita ênfase no prazer provavelmente não é muito sensato, particularmente à medida que você avança em vários estágios da vida”, opina Stearns.
“O que você quer é dar ênfase às conquistas, e não digo de uma perspectiva de status, mas sim de contribuir para a sociedade, ter uma sensação de que a sua vida valeu para algo. Esse é provavelmente o objetivo mais importante.”
Outra lição, na visão dele, é o equilíbrio delicado entre buscar sentido na vida, mas sem fazer disso algo obsessivo.
“A pressão para ser feliz corre o risco de ser contraproducente. Não acho que as pessoas nunca devam se perguntar, ‘sou feliz?’ Mas não devem fazer isso com frequência demais. Não é realista. Vamos manter nossas aspirações mais modestas.”
*Com informações de BBC