Loucuras que só os fãs brasileiros da Britney Spears fazem
Britney Spears, de 39 anos, está há 13 sob tutela de seu pai, Jamie Spears, em um caso envolto em sigilo, o que deu origem a um movimento pedindo sua liberdade; fãs brasileiros escrevem ao Congresso americano, para a polícia investigativa dos EUA, se coordenam para colocar a hashtag #FreeBritney entre as principais do Twitter em dias de audiência e até fazem manifestações físicas.
Sobre as cores do arco-íris, nas duas torres concebidas por Oscar Niemeyer para abrigar os escritórios do Congresso em Brasília, uma frase insólita se fixou por alguns segundos: Free Britney.
Era dia do Dia do Orgulho LGBTQIA+, noite de segunda (28/6), e o Congresso estava iluminado com aquelas cores como parte de uma homenagem espalhada pela capital.
A mensagem pedindo a liberdade da diva pop americana, contudo, foi uma surpresa.
Nas redes sociais, era tão inacreditável que, em tempos de fake news, esta bem que poderia ser uma.
Não era.
“Britney tem sido pauta há meses pelo que vem passando, e apesar de não fazer parte diretamente da comunidade LGBT, ela é uma das nossas grandes apoiadoras mundialmente consagradas”, diz a artista Ella Nasser, autora daquela mensagem.
Ela estava acompanhando um amigo fotógrafo que registrava o trabalho do coletivo Brasília Orgulho, responsável pela iluminação colorida no edifício e por projeções de palavras ligadas a direitos humanos, como “cidadania” e “igualdade”.
Ella então teve um “feeling” e pediu que eles projetassem – por que não? – “Free Britney”. Foram apenas 15 segundos, mas a imagem viralizou. Como que um movimento pedindo a liberdade de uma artista pop americana havia chegado ao Congresso brasileiro?
Não é que o “Free Britney”, o movimento que pede a liberdade de Britney Spears, tenha chegado agora ao Brasil. Na verdade, os fãs brasileiros compõem uma parcela expressiva dos seguidores de Britney no mundo e há anos já são responsáveis por ações coordenadas online que pedem por sua liberdade.
Eles escrevem mensagens ao Congresso americano e até para o FBI, a polícia investigativa dos EUA, se coordenam para colocar a hashtag #FreeBritney entre as principais do Twitter em dias de audiência do processo da cantora e até fazem manifestações físicas como suas contrapartes americanas, estendendo faixas na avenida Paulista em São Paulo.
Britney angariou fãs no Brasil ao longo dos anos – já se apresentou três vezes no país, arrastando uma multidão no Rock in Rio em 2001. No mês passado, o Brasil foi o quinto país que mais ouviu suas músicas – hits como Toxic, Oops!… I Did It Again e Womanizer, entre outros -, atrás dos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e o México, de acordo com dados do Spotify.
Mas a última década de sua vida teve altos e muitos baixos. Britney, que tem 39 anos, está há 13 sob “conservatorship” de seu pai, Jamie Spears, em um caso envolto em sigilo. “Conservatorship” seria o equivalente no Brasil à antiga previsão da chamada curatela, quando um juiz nomeia um indivíduo ou organização para cuidar de outro adulto que é considerado incapaz de cuidar de si mesmo ou de administrar suas próprias finanças.
No mês passado, Britney disse que essa tutela tinha sido “abusiva”, que foi forçada a trabalhar e tomar remédios contra sua vontade e foi impedida de engravidar. Pela primeira vez, pediu publicamente o término do acordo legal. “Eu estou traumatizada”, disse ela. “Estou deprimida. Eu choro todos os dias.” Os advogados do pai de Britney negam que ele fosse responsável pelas restrições na vida privada da filha.
Na quarta-feira (14/7), a juíza do caso decidiu que a cantora poderá escolher seu próprio advogado, no que foi visto como uma vitória do movimento Free Britney.
Decifrando os posts de Britney
“Enquanto homem gay, pra mim, o Free Britney é um movimento de libertação. E ajuda a visibilizar o que acontece com as mulheres no nosso país e no mundo”, diz Alan Mangabeira, de 33 anos, fã de Britney desde os 11 e autor de um doutorado sobre a estética do fandom da cantora.
Mangabeira nasceu em Juazeiro, interior da Bahia, onde a perspectiva cultural, conta, era muito ligada ao axé e ao pagode, “vinculados a uma masculinidade que não me cabia”, diz ele.
Britney surgiu como um furacão em 1998, quando ela tinha apenas 16 anos, com o hit …Baby One More Time. Meses depois, assistindo a TV Manchete, um Mangabeira pré-adolescente viu o clipe e se encantou. Nos anos seguintes, embora sua admiração crescesse, ele se lembra de pensar que, se quisesse “sobreviver no colégio”, teria que parar de dizer que escutava Britney.
O que lhe salvou foram as redes sociais, onde encontrou outros fãs como ele. No mIRC, rede social com salas de bate-papo dos anos 1990, havia canais de cidades compostos por outros fãs de Britney – alguns dos quais são amigos de Mangabeira até hoje.
Os grupos de Britney, já uma das maiores celebridades do mundo nos anos 2000, migraram para o Orkut e, mais tarde, para o Facebook e Instagram. Hoje, também há grupos dos B-Army (como são chamados os fãs da cantora) no WhatsApp e no Telegram, além dos blogs.
E foram nesses fóruns online que os fãs começaram a desvendar as esquisitices da vida privada de Britney, farejando que havia algo de errado com a cantora. Em 2017, o podcast americano Britney’s Gram começou a analisar as publicações de Britney no Instagram tentando decifrar como ela estava se sentindo, e o que queria dizer com as mensagens cifradas que publicava.
A faísca veio em abril de 2019, quando o podcast divulgou um áudio de uma fonte que dizia ter feito parte da equipe jurídica de Britney revelando que a estrela estava detida em uma clínica de saúde mental contra sua vontade.
Enquanto isso, Mangabeira e outros donos de sites dedicados a Britney no Brasil estavam fazendo investigações semelhantes. “Fazíamos análise semiótica das imagens, análise de discurso, análise de expressão corporal, conversávamos com psicólogos, psiquiatras. Fomos chamados de teóricos da conspiração, mas a fala da Britney [na audiência judicial no mês passado] confirmou nossas teorias mais bizarras.”
Dois documentários – The Battle for Britney, da BBC, e Framing Britney, do The New York Times – divulgaram todas essas teorias que antes eram de nicho, popularizando a campanha. E a exibição do segundo no Big Brother Brasil, pela Globo, levou o assunto para a boca do povo. Principalmente quando um dos participantes do reality, Caio Afiune, se mostrou revoltado pela situação de Britney em rede nacional.
O movimento saiu das redes e tomou as ruas nos Estados Unidos, onde fãs protestam em Los Angeles, na Califórnia, sempre que há uma audiência do caso.
Na Flórida, um brasileiro é um dos responsáveis pelas manifestações que ocorrem em Miami e em Tampa. O dentista Felipe Servat, 30 anos, fã desde os 10, já chegou a reunir mais de 60 pessoas em um protesto, segundo diz.
“As pessoas que aparecem nos protestos são fãs que querem que a Britney fique ‘free’ e pessoas que se simpatizam com sua história”, diz ele, que mora nos Estados Unidos há oito anos.
Ele narra um momento crítico de um encontro seu com Britney que teria mostrado como a cantora já estava mal. Foi em um “meet and greet” (encontrar e cumprimentar, quando os fãs conhecem os ídolos) em Blackpool, no Reino Unido, em 2018.
“Ela foi bem estranha. Eu falei: ‘Oi, tudo bem?’, ela não ‘notice’ que eu estava no ‘room’ (ela não notou que ele estava na sala).” Alguns minutos depois, de volta à sala, ele falou: “Britney I love you”. “E mandei beijo. Nesse momento, ela virou as costas e encostou a cabeça na parede.”
Fãs também já saíram às ruas em São Paulo. Foi tudo por causa do cabeleireiro Paulo César, de 31 anos – fã desde os oito anos, e daqueles fãs mesmo. Seu corpo é repleto de tatuagens de Britney – tem até uma imagem do rosto dela na mão dele. No WhatsApp, o cabeleireiro deixa uma mensagem automática: “PAULO SPEARS AGRADECE SUA MENSAGEM. Em que posso ajudar?”
Em dezembro do ano passado, depois da primeira audiência sobre a tutela de Britney na Justiça, Paulo compartilhou em um grupo de fãs sua intenção de protestar na avenida Paulista, em São Paulo. Com um banner “Free Britney” e uma caixa de som tocando seus hits, ele registrou o primeiro protesto físico por ela no país. Mas foram só três pessoas – incluindo ele.
A segunda manifestação, no dia 4 de julho, teve maior adesão. Paulo estima que 30 fãs foram à avenida Paulista exigir a liberdade de Britney.
“Meu intuito era que chegasse a Britney o apoio do Brasil, visto que somos um dos que mais consomem Britney Spears desde sempre”, diz Paulo. Sua última tatuagem, a palavra “domination” (dominação), no braço, foi feita antes da turnê de Britney que leva esse nome. Depois que ele marcou a pele para sempre, porém, Britney cancelou a turnê em meio à polêmica de sua tutela.
Mensagens ao FBI
A atuação mais marcante do B-Army no Brasil, porém, é pelas redes.
Os protestos online passam de uma rede para outra. Alegando medo de serem derrubados por empresários da Britney, os fãs brasileiros fazem lives (vídeos ao vivo) no Instagram, onde divulgam os links de grupos internos fechados no Facebook, WhatsApp e Telegram.
A live não fica salva. Assim, só quem assistiu ao vídeo terá acesso aos grupos. Ali, os fãs organizam horários para que todos comecem a usar a hashtag #FreeBritney no Twitter – que ficou entre as maiores do Brasil na quarta (14/7), dia de audiência do caso.
Os fãs brasileiros também se coordenam para escrever e-mails para o Congresso americano e até para o FBI.
“Já são quase 48 horas após as declarações, a situação já é mais do que inadmissível! Texto padrão para denúncia no FBI!”, escreve uma fã de Britney em um grupo fechado para fãs no Facebook. Em seguida, o texto em inglês, para que outros fãs copiem e colem e mandem para o órgão:
“Por favor investiguem a tutela por trás da cidadã americana Britney Jean Spears no estado da Califórnia”, começa a mensagem. “A Sra. Spears declarou em 23 de junho passado estar sofrendo o que parece ser um caso de várias violações de direitos humanos, e precisa ser ouvida e ações devem ser tomadas para mantê-la completamente segura e fora deste sistema.”
“Foi sugestão minha. A gente conversou com os fãs de fora e eles jogaram para a gente a verdade, de que tinha muita gente interessada no caso para se promover às custas do sofrimento da Britney. Então chegamos à conclusão que o órgão mais confiável agora para investigar isso é o FBI”, explica a professora de inglês Aline dos Santos Amorim, de 33 anos, fã de Britney desde os 11. Ela estima que cerca de 100 fãs escreveram para a polícia investigativa americana – sem resposta.
“Há dois anos, nunca imaginaria que fosse entrar em contato com o FBI para fazer uma denúncia. A gente vê que a Britney está vivendo uma situação errada. Eu, que sou mulher, consigo me relacionar com o que foi relatado por ela em algumas situações.”
A congressistas americanos, fãs brasileiros se espelham nos B-Armies do país e mandam mensagens pedindo a revisão da lei de tutela nos Estados Unidos.
Há outros movimentos, como um recente em que fãs de Britney, incluindo o B-Army brasileiro, se organizaram para fazer resenhas negativas do livro da irmã de Britney, em pré-venda no site de uma livraria americana.
Silenciamento de mulheres
“Lutar por Britney”, como diz Mangabeira, virou o segundo trabalho de muitos fãs. “Quando eu não estou trabalhando, estou trabalhando por Britney. É como se eu tivesse dois empregos”, afirma. Paulo, o cabeleireiro com o corpo tatuado de Britney, diz que reserva três horas diárias para essas movimentações, incluindo alimentar uma página sua sobre a artista.
E por que dedicam tanto tempo para pedir que a tutela de Britney seja encerrada?
Para Mangabeira, Free Britney é um “movimento feminista, com pegada pop muito forte, que leva o discurso feminista a lugares que não chegaria”.
“A Britney viveu a vida inteira aprisionada num patriarcado ferrenho. No Brasil, várias mulheres vivem como a Britney em instâncias menores ou maiores, silenciadas por maridos abusadores, pelo emprego ou família O movimento fala sobre a violência contra a mulher e o silenciamento de corpos femininos.”
A mensagem no Congresso recebeu críticas por ofuscar o dia feito para celebrar os LGBTQIA+. Mas Mangabeira defende.
“O Brasil tem uma força muito grande no movimento Free Britney, apesar de estarmos distantes. As pessoas nos questionam muito: ‘Por que vocês estão lutando por Britney, que não é brasileira, enquanto o país está naufragando?'”, diz. Para ele, no entanto, há “diversas possibilidades de luta numa era pós-moderna”. “Lutar por Britney não anula outras lutas.” Uma delas é pelas pessoas trans, diz ele, que compõem parte expressiva do fandom da Britney no Brasil, país onde são assassinadas em números recorde.
Ella, a artista que teve a ideia de colocar a mensagem no Congresso, diz ter crescido e se descoberto como uma mulher trans assistindo e acompanhando Britney. Para ela, muitas pessoas acham que o movimento “é uma trend de fã de diva pop”.
“Não é! Free Britney é um grito de liberdade de uma pessoa que está em condição de ‘tráfico de pessoa’, privada dos seus direitos básicos, do seu direito de reprodução, de usufruir do dinheiro de seu trabalho enriquecendo ‘milionariamente’ outras pessoas que querem deixá-la presa”, diz. “É importante que ela possa usar a voz dela para falar por várias outras vítimas desse sistema.”
Para Paulo, a luta dos fãs fez com que Britney criasse “mais forças ainda para fazer essas denúncias”. “Acreditamos que fomos responsáveis por salvá-la, e vamos continuar lutando.”
*Com informações de Terra