O “dinheiro paulista” que circulava em 1932
Durante movimento contra governo Getúlio Vargas, autoridades de São Paulo decidiram criar cédulas próprias.
Sem dinheiro não se faz nada, nem revolução — era o que acreditavam os paulistas que se insurgiram contra o governo de Getúlio Vargas (1882-1954) em 9 de Julho de 1932, no movimento que se tornaria o maior conflito armado brasileiro do século 20 e entraria para a historiografia como Revolução Constitucionalista de 1932.
Por isso, apenas cinco dias depois da eclosão do movimento o então governador aclamado de São Paulo, Pedro de Toledo (1860-1935), decretou a autorização de “emissão especial de bônus do Tesouro do Estado para substituir as disponibilidades dos bancos da capital e do interior junto às agências e filiais do Banco do Brasil, no Estado de São Paulo”, conforme o texto da lei.
“Precisávamos de cédulas para fazer os valores que estavam nos cofres de São Paulo circularem. Não tínhamos o suficiente em cédulas e, obviamente, o governo Vargas não ia mandar para cá mais cédulas de outros bancos de outros estados”, resume à BBC News Brasil o pesquisador e colecionador Ricardo Della Rosa, neto de combatentes e autor do livro ‘Revolução de 1932: A História da Guerra Paulista em Imagens, Objetos e Documentos’. “Então criou-se o dinheiro paulista, de acordo com o [lastro] que havia nos cofres da época.”
“Emitiu-se papel-moeda. Era um meio de obter financiamento para o movimento”, explica à reportagem o historiador Marco Antônio Villa, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e autor do livro ‘1932: Imagens de Uma Revolução’. “Ao emitir papel-moeda, os ‘revolucionários’ iam pagando os fornecimentos necessários para a guerra.”
“Afinal, o rompimento das relações com o governo central trouxera também o isolamento econômico”, acrescenta o jornalista e escritor Luiz Octavio de Lima (1959-2020), no livro ‘1932: São Paulo em Chamas’. “São Paulo precisou imprimir o seu próprio dinheiro e passou a emitir cédulas de 5, 10, 20, 50, 100 e 200 mil réis.”
“São Paulo constitucionalista teria seu dinheiro próprio enquanto houvesse carência daquele federal, porquanto as atividades produtivas não poderiam ser prejudicadas pela falta de meio circulante”, pontua o escritor, historiador e jornalista Hernâni Donato (1922-2012), no livro ‘A Revolução de 32’. “Os bônus da Revolução ajudariam a reforçar o tesouro estadual, especialmente solicitado pelos gastos da guerra.”
O decreto do governador especificava que o dinheiro paralelo deveria durar somente durante o período de exceção.
“Uma vez restabelecida a normalidade da situação […] serão resgatados os bônus emitidos com o produto dos cheques recebidos”, pontua o artigo segundo do texto. A lei também ressaltava que o governo deveria incinerar essas cédulas à medida que seus valores fossem resgatados — pelas oficiais da república. E que o câmbio deveria ser o mesmo da moeda nacional — os mil réis, que vigoraram de 1833 a 1942.
Em termos práticos, a emissão das cédulas servia para estimular a produção paulista, deixando o Estado “o mais autossuficiente possível”, conforme frisa Della Rosa. Na economia da época, completamente off-line, o motor precisava de dinheiro em espécie para funcionar.
“A emissão [do papel-moeda] foi feita para não acabar com o meio circulante em São Paulo”, explica à BBC News Brasil o administrador e empresário Gilberto Fernando Tenor, presidente da Sociedade Numismática Brasileira. “O governo federal de Getúlio Vargas havia mandado fechar todos os bancos oficiais em São Paulo, para assim [os paulistas] não terem dinheiro em circulação.”
Tenor deve lançar em 2022 um livro sobre o assunto, cujo título provisório é ‘A Numismática Paulista Através da Revolução de 1932’
A ‘Casa da Moeda’ de São Paulo
Usar a expressão “operação de guerra” para definir como o modus operandi foi montado é empregar o termo em seu sentido literal. E, como costuma acontecer em situações do tipo, houve também espaço para improvisos.
Em seu livro, Della Rosa conta que depois da canetada de Toledo, técnicos do governo foram incumbidos de definir todo o plano logístico — da maneira mais rápida possível. A operação contou com a colaboração de uma empresa paulista do ramo gráfico já tradicional em 1932, a Companhia Melhoramentos.
Em reunião ocorrida no Palácio dos Campos Elíseos, então sede do governo paulista, os diretores da firma se comprometeram a colocar o dinheiro em circulação dentro de cinco dias. Duas toneladas de papel produzidas em Caieiras, na Grande de São Paulo, foram levadas então, ainda úmidas, para a gráfica na Lapa, em São Paulo — o edifício, sede da Melhoramentos até hoje, tem seu valor histórico reconhecido; é tombado pelo Conpresp, o órgão municipal de proteção ao patrimônio.
Todo esse trâmite ocorreu sob escolta militar, para garantir que nenhuma emboscada inviabilizasse a operação. Nas oficinas da Melhoramentos, convertida em “casa da moeda” paulista, o dinheiro passou a ser impresso.
Donato, que trabalhou como relações-públicas da Melhoramentos, ressalta em seu livro que “as cédulas, quatro polegadas por duas, tinta rósea sobre fundo amarelado, anunciavam-se ‘Pró-Constituição’ e ganharam ilustrações evocando bandeirantes paulista e grandes vultos nacionais”.
“O governo [paulista] justificou essa emissão estadual, face às inquietações internas, mas teria buscado também firmar-se como capacidade de exercício do poder aos olhos dos países aos quais pleiteara o reconhecimento de sua beligerância, alegando que dispunha ‘de poder liberatório, emitido sobre lastro de cheques contra o Banco do Brasil em vista dos recursos do Estado ali existentes”, acrescenta Donato.
Della Rosa narra uma história, com contornos de lenda, sobre a solução encontrada para evitar falsificações. De acordo com relatos da época, os técnicos do parque gráfico requisitaram um pulôver de lã de uma funcionária, vermelho e verde. Desfiaram-no todo e destroçaram os fiapos. As milhões de partículas teriam sido misturadas à massa do papel, para torná-lo à prova de cópias.
Verdade ou não, nada impossibilitou a ação de larápios. O dinheiro paulista começou a circular em 20 de julho. Conta-se que menos de 10 dias depois já havia cópias piratas na praça. “A polícia identificou e lacrou uma gráfica na região da Ladeira Porto Geral, no centro da cidade. Espalhou-se a história, jamais comprovada, de que os meliantes estavam sabotando a economia paulista a mando de Vargas, justamente para invalidar e desacreditar o dinheiro revolucionário”, narra Della Rosa.
Donato relata que não foi um caso isolado, mas que houve “mais de um falsificador”. “Para que a economia do estado não caísse em total descrédito, adotou-se uma solução paliativa”, afirma Della Rosa. “Técnicos da fábrica de Caieiras foram requisitados e montaram banquinhas no centro da cidade. Em cada ponto, ficava um policial e um técnico. O cidadão chegava com um maço de dinheiro e recebia o veredito. Fosse falso, era destruído na hora, sem direito a chorumelas.”
Design e simbolismos
Mesmo tendo sido planejado a toque de caixa, o dinheiro paulista teve uma concepção bem-pensada. Della Rosa afirma que era preciso comunicar, nos detalhes, que “São Paulo não era separatista”, principalmente “para rebater o discurso de Vargas”.
Por isso, segundo o pesquisador, as figuras escolhidas para estampar as cédulas tinham de ter relevância, mais do que paulista, nacional. Uma das efígies selecionadas, por exemplo, foi a do militar e político Floriano Peixoto (1839-1895), primeiro vice-presidente e segundo presidente da história do Brasil.
Também estamparam notas o militar e político Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), conhecido como Duque de Caxias; o jurista e diplomata Ruy Barbosa (1849-1923); o almirante Joaquim Marques Lisboa (1807-1897), o Marquês de Tamandaré; o almirante Francisco Manuel Barroso da Silva (1804-1882), que conduziu a vitória brasileira na Batalha do Riachuelo; e o general Manuel Luís Osório (1808-1879), considerado herói da Guerra do Paraguai.
Apesar desse esforço patriótico, contudo, não ficaram de fora referências aos bandeirantes, tão caros ao imaginário da própria configuração da história paulista. “Esses bônus [com os bandeirantes neles impressos] são a maior evidência do quanto o mito do bandeirante estava sendo mobilizado pela administração revolucionária para impulsionar uma adesão da sociedade paulista ao movimento”, comenta o historiador Paulo César Garcez Marins, professor do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP).
Dois personagens foram escolhidos para cumprir tal papel: Domingos Jorge Velho (1641-1705), famoso “caçador” de índios e negros, conhecido como o bandeirante que destruiu o Quilombo dos Palmares; e Fernão Dias Paes Leme (1608-1681), considerado um dos mais notórios bandeirantes da história.
“A ilustração [da cédula] com o retrato de Domingos Jorge Velho é [uma reprodução da imagem de autoria] do Benedito Calixto [(1853-1927)] que pertence ao acervo do Museu Paulista”, detalha o historiador.
“Já a [imagem] do Fernão Dias Paes Leme é [uma reprodução] da escultura do Luigi Brizzolara [(1868-1937)], também do Museu Paulista.”
“A Revolução de 1932 foi central para que se vencessem algumas barreiras entre as elites tradicionais, ditas quatrocentonas, e os imigrantes. Uma dessas mudanças foi justamente a mobilização dos bandeirantes, que deixavam de ser um símbolo distintivo das velhas elites, que descendiam deles, para se tornar símbolos da vontade democrática de São Paulo, com base naquelas leituras que se faziam de São Paulo quase como uma república autônoma no período colonial”, contextualiza Marins.
“Os bandeirantes, assim, eram vistos como portadores de valores republicanos. Tornavam-se um símbolo veiculado para todos os paulistas, não importando se eram de origem antiga ou recente”, afirma o historiador.
*Com informações de Terra.