Risco Total
Recentemente vi uma jovem senhora expressar leve reclamação pela lentidão de uma criança, provavelmente seu filho, enquanto tentavam atravessar uma movimentada avenida. Meu incômodo se deu, primeiro, por ser a travessia na faixa de pedestres, com o semáforo vermelho para veículos; depois, porque a criança parecia ter deficiência, portanto com evidente dificuldade de locomoção.
Lembrei de imediato algumas brincadeiras que amigos faziam comigo: “ – Corre! Não vai chegar em tempo! “. Claro que sabiam que eu não correria e que só causariam risos pela sugestão. A ameaça de não chegar nalgum imaginário prazo, também era em tom intencionalmente jocoso. Isso nunca foi motivo para estremecimento da amizade. Servia, sim, para boas gargalhadas. Não os acompanhar seria como avaliar que aos competidores, e não era o caso entre nós, fosse atribuído algum demérito por classificação inferior ao primeiro lugar. Insensato.
Há pessoas, entretanto, que autoimpõem a adequação a parâmetros, muitas vezes além da própria capacidade, causando mal-estar, sensação de impotência ou inferioridade. Injustificáveis sentimentos, especialmente hoje, em que a evolução humana já intuiu que a contribuição de cada um para o sucesso de todos não exige as mesmas habilidades, nem mesmas competências. Na verdade, a diferenciação entre diversas aptidões tem a virtude de complementar e, assim, tornar o resultado geral maior que a soma dos conhecimentos individuais. Entende-se viável o sucesso, mesmo sem domínio de algum talento específico. Importa que saibamos disso para evitar exigir de alguém aquilo que, claramente, supera seu alcance.
Meu pai serviu no Batalhão de Cavalaria, no Prado/BH. Lá teve contato com Pracinhas egressos da campanha italiana, montes Prano e Cassino, ouviu muitas histórias e estórias daquela guerra infeliz. Uma delas dava conta de que um soldado inglês, ferido na perna por estilhaço de granada, atrasou-se em chegar ao ponto de retirada e foi abandonado ali, porque seu regimento, sem notícias dele, supôs que havia sido abatido. O local, próximo ao estreito de Bósforo, era uma base com pequeno campo de pouso, no rigoroso inverno de 1944. Não havia energia; as rações haviam se esgotado há dias; animais começavam a rondar, era grande o risco de inimigos.
Madrugada, 23 de dezembro, 27 graus negativos, ouve-se o ronco do bimotor pousando. O soldado se levanta a muito custo, exaurido. Aproxima-se o piloto bastante ríspido:
- Você é mecânico?
- Sim, Capitão.
- Preciso que conserte o trem de pouso esquerdo. Amanhã é Natal; minha esposa e filho me aguardam.
- Estamos sem energia, não tem iluminação suficiente. Tentarei ao amanhecer, Capitão.
- Sem desculpas, soldado. É uma ordem. Se não atender imediatamente, vou recomendar uma punição.
O soldado pensou alguns instantes e informou: - Capitão, estou prestes a perder minha perna; estou congelando e sem alimento há dias; não tem energia, nem luz, nem aquecimento; estou exposto a ursos, lobos e ao inimigo; amanhã é Natal e a minha família está há centenas de quilômetros daqui. Então, Capitão, com todo o respeito, quando o senhor fala de punição, a que exatamente o senhor se refere?
Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.
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2 Comments
É notório o fato de que o piloto capitão não se deu conta dos ferimentos do soldado por ter olhado sómente “seu UMBIGO”!
Enquanto o egoísmo e egocentricidade não tiver limites a humanidade não terá os benefícios de direitos iguais, ficando sempre à margem das migalhas e sobras.
Com certeza.
Algumas pessoas não se dão conta do que realmente se espera delas.